retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Há muito sou de opinião de que o volume de ruído que alguém pode suportar confortavelmente é inversamente proporcional à sua capacidade mental.

  Arthur Schopenhauer, por volta de 1833.


Eu vivo em Paty do Alferes, município serrano no Centro-Sul fluminense, há 42 anos, no bairro Paiol Velho. Bairro rural com poucas casas e que já fora um canto bem aprazível. Hoje não. O município como um todo, à semelhança do geminado Miguel Pereira, ambos se degeneram ao ruído ensandecido de motos, das músicas estrepitosas saindo dos carros, das casas... Sem pudor algum.
 Sobre ruído, barulho, eu penso e sinto feito Schopenhauer, plenamente. A invasão de vibração sonora agride, desequilibra, e o descaso com o outro, outrem, é demais banalizado. Se nos queixamos de tamanha desinteligência, ai de nós outros — em tom pra lá de belicoso o audiota replica @#$%¨&*! Você que ponha tampão nos ouvidos!...

   Muita asneira berrada e gesticulada. Cena patética. E isso se dá na roça, ambiência de tradição tranquila e pacata.
  Outros tempos.
  Hoje, sem qualquer discernimento o audiota produz ruído, burila o umbigo e caga e anda pros demais, gente e bicho — cachorros com a audição perturbada pelo estardalhaço das motos e demais estridências, pervertidos latem dia e noite.
  Na Rua Kamataú (a Estrada Paiol Velho tem duas ruas que dela saem, ambas sem saída), nesta rua oportunistas escancararam uma birosca. A dez metros da casa dum casal de idosos ali estabelecidos têm uns 35 anos, bem ali um homem e uma mulher vindos num sei donde, facilitados num sei por quem, aos homens e às mulheres, aos jovens e às crianças, aos forasteiros cosmopolitas ajuntados aos da terra, os que rendem bufunfa àqueles, bem ali os fajutos neobirosqueiros promovem farra, hedonismo a desmascarados aglomerados.
 Perdigotos ao rocio e cabeças turbinadas farreiam horas na esbórnia. Vozerio, músicas estridentes, motos detonando e escambau varam a madrugada do Paiol Velho.

Incrível! Terrível! Barbarismo! Socorro!

 De identidades desconstruídas e “assombrados pelo espectro da exclusão” social, naquela bandalheira ansiosos embebem-se de valores prediletos aos cobiçosos, se empapuçam de egolatria utilitarista, culto a si mesmo de representação extremada. Essa praga sinistra e de amplitude ainda nem medível empesteia cabeças rendidas à massificação. E nesses tempos de Covid-19, também ele, na veia, expresso, direto da Metrópole.
  No sábado 4 de julho, celebrando a reabertura de bares pelo poder público, “triunfo da insanidade”, os tais neobirosqueiros inovam com grupo ao vivo e instrumentos amplificados aos quatro ventos. Exaltantes aglomeram-se — é farra madrugada adentro. No 25/07/2020, outro sábado, o mesmo inferno (dizem que a PM esteve aqui e... caiu na farra).
  Assim tem sido... Por tudo, viver no Paiol Velho, hoje, é perigoso.
 E além dos neobirosqueiros da Rua Kamataú têm os aqui mais próximos, os frontais. Tem a mulher do homem que não fala, rosna. Ela, com uma caixinha quadradinha pra lá de esporrenta, ela põe o troço num volume bárbaro, de inspirar terror, e sai zanzando pelo terreiro. Se reclamo, o homem com sinais de ameaça e rosnando dentes resmunga @#$%¨&*! Você que ponha tampão nos ouvidos!... Tô engasgado. Num sei não...
 Ao lado dos dois toscos, mas no patamar de idiota, bem aqui à frente mora o enricado escroque com especialidade em usura, agiotagem, prática como se apropriou do imóvel, o hoje Mutreta da Pedreira. Com este aí, além do abusivo ruído ecoando do covil, com ele eu tenho algumas pendengas, também com o seu protótipo primogênito e mais outros dois seus cuspidos e escarrados. Com o traiçoeiro líder deste bando violento eu tive um particular que em setembro passado me levou à 96ª DP, em Miguel Pereira. Ô dia! Outra pendência é a da água que nasce naquela sua terra, passa por debaixo da estrada e aqui corre o que chamo meu arroio, essencial pras culturas e especialmente pro composto orgânico. Sem consultar a minha necessidade da água o ardiloso faz uma barragem tão inconsequente que já na primeira chuvarada rompe atulhando as manilhas por debaixo da estrada e o meu arroio. A água que brota naquela terra e naturalmente vem, passa por debaixo da estrada, aqui flui feito arroio, corre pelo Lopes e enfim naturalmente deságua num ribeirão mais abaixo, e este noutro... Agora essa água só segue seu curso se junto à chuva.
  Em 2018 eu escrevi à Secretaria do Meio Ambiente (processo no 6069/2018) e surpreendentemente no dia seguinte dois funcionários estiveram aqui, fotografaram e... Reticências faz-de-conta.
  Indignações doutra espécie.
  Voltando ao ruído, o que fazer pra ter a atenção das autoridades sobre esta praga descontrolada? Outro dia eu me dei o determinante prazo até o final do ano, pra até lá as coisas se desenrolarem, isto e tudo mais. Sinto que tô no limite e temo que esse clima sombrio atice desatinos, de nos momentos absurdos de troca de insultos eu me dane de vez com o audiota, ele comigo, prevaleça o destrambelhamento e tudo dê numa tremenda merda.
  Referindo-se essencialmente a si mesmo, prepotência arrogante, o audiota ignora a outra pessoa. E sendo assim, estrito ao altíssimo volume das músicas um tanto ecléticas — muita merda variada no volume e à hora que dá na telha —, exausto da violência sonora e receoso duma violência física eu fui à PM e à Guarda Municipal em Paty. Picas. Em meados de julho eu fui à 96ª DP, em Miguel. Nessas instituições me escutaram informalmente, nenhuma registrou a queixa. Por fim eu escrevi e-mail ao jornal local Em Destaque relatando a enorme indignação. Aguardo semana e nada, então reenvio; outra semana e o periódico picas.
  Sem mais a quem recorrer, resta pedir arrego, correr-cotia, capinar fora... Num sei, quem sabe eu ainda tenha de ir ao Fórum de Paty...

Haja ânimo! Haja cabeça! Haja... haja... haja...

  Doutro modo, às armas? Embora exausto, a minha arma tem sido paz sem jamais resignar; a do audiota, ele agora é autorizado e estumado a carregar o berro e fazer fogo. Mais que paranoia e tensão emocional pelo coronavírus, o mau moral; mais, dissemina-se a má moral.
  A epígrafe que uso com a opinião do Schopenhauer sobre ruído me deixa um tanto mais manso, por assim dizer, nem sei, mas, por outra, bem mais temeroso. Sei, tem vez é possível interagir com o tosco, de ele até vir a surpreender; já o idiota, com a sua violência... A lida com este tipo de reduzida habilidade mental é perigosa. Vê o homem da mulher da caixinha quadradinha, aquele é um híbrido de tosco com idiota. Perigosíssimo.
  Viver na pós-modernidade ou na modernidade líquida, seja o que for, sobreviver nela tá foda. Vale-tudo. Num tenho estrutura interna pra todo o tempo estar de prontidão à rinha. Ô saco... Cansa.
  Deslocado do espírito da época, sinto-a feito Ana Cristina Cesar, com grande desconforto:

Sou um homem do século XIX
disfarçado em século XXI

  Independentemente da seríssima crise sanitária, quem deveria regular e fiscalizar essa bandalheira infernal seria a Câmera dos Vereadores e a Secretaria do Meio Ambiente juntas à Guarda Municipal e à PM, suponho. Pois então eu pergunto às autoridades: imaginando que aconteça isso com você [se coloque no lugar do outro — empatia], imaginando que aconteça isso com você: ruído descontrolado onde vive. Exato. Você pouco tolera ruído, desequilibra, e a qualquer mediana capacidade mental... E aí, você faria o quê?
  Qualquer que seja a intervenção pra serenar este puta imbróglio sonoro é especialmente fundamental a efetiva participação da Secretaria da Educação interdisciplinando sociabilidade junto às crianças, de os miúdos virem a tornarem-se pessoas com dignidade, que cresçam considerando o espaço alheio tanto quanto o próprio. É assim que entendo essa barafunda geral, mais ou menos assim. Nem sei. Quem entende essa joça?! As relações entre pessoas são duma complexidade absurda. E por que assim entendo ou desentendo reitero que a Secretaria da Educação é determinante interdisciplinando sociabilidade ao fundamental, ao colegial, ao médio, aos pais, ao bairro...
  Torço muito que a população de Paty do Alferes e de Miguel Pereira, que os indignados denunciem o espírito perturbador que nos assombra, e que assim tenhamos retorno diligente e determinante. Senão, não só o Paiol Velho, mas toda a região se dana. Barbarismo. Eu tô com 64 anos e vivo aqui desde os 22, sinto (ou sentia) este talhão o refúgio vitalício... Nunca poderia imaginar viver enredo soturno feito este. Aqui, Paiol Velho! Nossa! Na imagem aérea aí acima num dá pra perceber essa inferneira que relato, parecendo desvario... Desce lá.
  Passando a pandemia do Covid-19, depois desta tragédia sanitária nada será como antes, mas mais, muito pior. Além das restrições higiênicas nas relações humanas — já há muito entre sentimentos e sinceridades sutilmente equidistantes, crônica indisfarçável —, ainda teremos de nos escudar da egolatria utilitarista oficialmente capitaneada.
  Assim tem sido aqui no Paiol Velho... Triste. Tristíssimo.
  Até.                                                         
Em tempo: eu não entendo muito bem tudo isso, tem vez que nada, mas sinto que isso tudo vai dar numa tremenda merda. Num sei não...

Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 04/09/2020
Alterado em 04/06/2023


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