retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Millôr Fernandes, o escritor homenageado pela FLIP 2014 em entrevista exclusiva para a primeira edição da Revista Língua
 
Por Luiz Costa Pereira Junior e Marco Antonio Araujo
 
Em agosto de 2005, Língua fez uma entrevista exclusiva com o escritor Millôr Fernandes, para a sua primeira edição. Agora que o escritor foi escolhido para ser o homenageado da FLIP 2014, aproveite para relembrar os melhores  momentos da entrevista.
 
 
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Millôr foi uma vítima da ortografia. Nasceu em 16 de agosto de 1923, no Rio, como Milton Viola Fernandes. Registrada depois (seu aniversário oficial é em 27 de maio de 1924), a certidão de nascimento foi grafada de tal jeito que o t de Milton parece um l seguido por um acento, e o n, um r. Foi assim que, aos 17 anos, Milton soube que seu nome era Millôr. Talvez por revanche, construiu uma carreira de rupturas com o português padrão, com voos de imaginação linguística que, a rigor, formam gramática própria. "Não passo um dia sem escrever." Fez de tudo: roteirista, ilustrador, dramaturgo, compositor, ator. Não bastasse, foi ainda tradutor de Shakespeare, Pirandello, Racine e outros clássicos em cujos idiomas foi autodidata.

Fazer humor é levar a sério as palavras ou brincar com elas?
Humor, você tem ou não tem. Pode ser do tipo mais profundo, mais popular, mas tem de ter. Você vai fazendo e, sem querer, a coisa sai engraçada. Dá para perceber quando a construção é forçada. Tenho uma capacidade muito natural de perceber bobagem e destruir a coisa.
  É o que hoje o pessoal da informática chama de "processar".
Você coleta um monte de dados e processa rapidamente, antecipando o movimento da outra pessoa. Às vezes, para dar certo, bastam mudanças simples. Ano passado, o pessoal da televisão me pediu uma saudação para o dia dos namorados. Ia negar o pedido quando me veio o estalo: fiz dois corações bem normais e pus em cima o texto "Dia dos namorados — Eu quero que eles se fodam". A frase grosseiramente ofensiva tornou-se logo carinhosa.
  Há quem diga que trocadilhos, como os que o tornaram famoso, são uma forma infantil de humor.
  Na verdade, a frase clássica é "a forma mais baixa de humor". Quem diz isso não sabe o que diz. Um Shakespeare não existe sem trocadilho. Nem Cristo, e é só lembrar o reino que veio depois do "Pedro, tu és pedra". O cristianismo está todo fundado num trocadilho. O trocadilho foi a verdadeira graça de Deus.

Como foi seu aprendizado da língua? A escola ajudou ou atrapalhou?
Tive a grande sorte de trabalhar na imprensa com menos de 14 anos, em 1938. Havia deixado de estudar aos 10 [por causa da morte da mãe; o pai perdera quando tinha 1 ano de idade]. No primário, aprendi a gostar de estudar e a ler por causa de uma professora, Isabel Mendes. Nunca esqueci o dia em que ela me ensinou a ver as horas. Eu saía pelos corredores de olho nos relógios. Fiquei espantado em ver que um marcava 8 horas e o seguinte, 8h05. Foi quando percebi aquilo de mais banal na vida, a consciência de que o tempo está sempre à sua frente, faça você o que fizer. Passei dois ou três anos sem estudar. Quando eu ganhei o primeiro dinheiro, fui estudar no Liceu de Artes e Ofícios - curso de cinco a seis anos, que não cheguei a concluir porque já era "famoso" à época — com 20 anos já ganhava o maior salário da imprensa. Portanto, devo ter saído do colégio aos 18 anos. Portanto, tudo o que aprendi foi no primário. Depois de um primário sólido, você pode ser um autodidata. Foi a professora Isabel Mendes quem me ensinou a coisa mais importante em didática — a gostar de estudar.

Gostava de ler nessa época?
Não tinha livros em casa. Havia umas novelas da editora Vecchi, folhetins pra cozinheiras e domésticas. Eles mandavam dois ou três exemplares em cada endereço e, se a pessoa gostasse, mandavam cobrar as edições seguintes. Eram títulos muito melodramáticos, como Córsega em Chamas, Fausta Vencida, Nunzio Romanetti, ou policiais. Quando comecei a estudar na cidade, passei a ir com mais freqüência à Biblioteca Nacional. Ficava muito irritado quando havia feriado e a biblioteca fechava, pois ficava sem ler.

Com que língua mais gosta de trabalhar?
Não aprendi línguas até hoje (risos). Gosto de trabalhar com o português, embora inglês seja a que eu mais leio. Nunca tive temor de nada. Deve-se julgar as obras pelo que elas têm de qualidade, não por serem de fulano ou beltrano. Shakespeare fez muita besteira, mas tem três ou quatro obras perfeitas, e Macbeth é uma delas. Traduzi Shakespeare por ser do caralho, mas se me dessem algo ruim para traduzir, dizendo que era um pensamento dele ou de Confúcio, perguntaria se era mesmo dele ou de um completo idiota.

Nunca sentiu dificuldade na tradução por ter sido autodidata em línguas?
Ao traduzir, é preciso ter todo rigor e nenhum respeito pelo original. Você pega um Racine, que é em dodecassílabos, mas não entra nessa. No momento em que você se sujeita à rima, está perdido, porque a rima vai conduzir os seus pensamentos. Mas traduzir é sempre divertido. Uma vez fiz a tradução da peça The Sunshine Boys, do Neil Simon, a que dei o título de Os Palhaços de Ouro. Era sobre uma dupla de comediantes à antiga. Eles se odeiam depois de trabalhar juntos por décadas, mas são obrigados a conviver nos palcos. Numa cena, o mais velho dos dois bate à porta, o outro diz: "Enter!" O ator fica imóvel. "Enter! Enter!" E nada. O outro vai lá e pergunta por que ele não entrou. "Estou esperando você dizer coming!, como sempre se fez." Ora, enter e coming são expressões equivalentes em inglês, mas com aplicações diferentes. Por aqui, "entrar" já dá conta do recado. Para dar ideia do contraste que o original pedia, foi preciso dizer em bom português "penetra!"

Na sua opinião, quais as vantagens o português possui em comparação a outras línguas que você conhece?
A principal vantagem é a de ser a minha língua. Ninguém fala duas línguas. Essa ideia de um espião que fala múltiplas línguas não passa de mentira. Vai lá no meio do jogo dizer "salamê minguê, um sorvete colorê..." ou "velho guerreiro". Os modismos da língua, as coisas ocasionais, não são acessíveis a quem não é nativo. Toda pessoa tem habilidade só no seu idioma. Você pode aprender uma, dez, sei lá quantas expressões de outra língua, mas ainda existirão outras mil — como é que se vai fazer? A língua portuguesa tem suas particularidades. Como outras também. Aprendi desde cedo a ter o cuidado de não rimar ao escrever uma frase. Sobretudo em "-ão".

Quais as normas mais loucas ou mais despropositadas da língua portuguesa?
Toda pesquisa de linguagem é perigosa porque tem o caráter de induzir o sentido. Não tenho nenhum carinho especial por gramáticos. Na minha vida inteira sempre fui violento [no ataque às regras do idioma], porque a língua é a falada, a outra é apenas uma forma de você registrar a fala. Se todo mundo erra na crase é a regra da crase que está errada, como aliás está. Se você vai a Portugal, pode até encontrar uma reverberação que indica a crase. Não aqui. Aqui no Brasil a crase não existe.

Mas a fala brasileira é mutante e díspare, cada região tem sua peculiaridade. Como romper regras da língua sem cair no vale-tudo? 
Se não houver norma não há como transgredir. A língua tem variantes, mas temos de ensinar a escrever o padrão. Quem transgride tem nome ou peito que o faça e arque com as conseqüências.
Mas insisto que a escrita é apenas o registro da língua falada. De Machado de Assis pra cá, tudo mudou. A língua alemã fez reforma ortográfica há 50 anos, correta. Aqui, na minha geração, já foram três reformas do gênero, uma mais maluca que a outra. Botaram acento em "boemia", escreveram "xeque" quando toda língua busca lembrar o árabe shaik, insistiram que o certo é "veado" quando o Brasil inteiro pronuncia "viado". Chamar viado de "veado" é coisa de viado. Quando chegaram a tais conclusões? Essas coisas são idiotas e cabe a você aceitar ou não. Veja o caso da crase. A crase, na prática, não existe no português do Brasil. Já vi tábuas de mármore com crase errada. Se todo mundo erra, a crase é quem está errada. Se vamos atribuir crase ao masculino "dar àquele", por que não fazer o mesmo com "dar àlguém"? Não podemos.

Você já escreveu certa vez um texto em "lusitol" e o traduziu para o "brasilol", mostrando o abismo de linguagem que existe entre Portugal e o Brasil. O nosso país caminha para a constituição de uma língua própria?
É muito difícil fazer esse tipo de previsão. As influências hoje em dia são tão interativas, tão permutantes, que não sei se o Brasil vai formar uma língua tão diferente de Portugal, porque o inglês também está batendo à porta deles. O mundo inteiro hoje busca aproximação por meio do inglês. É um idioma que teve muita sorte — quando o império britânico começou a decair, surgiu o americano. O inglês tem inúmeras línguas, mas continua inglês. Assim também, há uma língua portuguesa com variantes, dialetos e idioletos.

Mas as diferenças não pesam?
Nem sempre é fácil entender um português e há filmes portugueses que só conseguimos ver com legendas. O que acontece é que temos dificuldade de entender o português de Portugal mais pela eufonia e pela prosódia que pelos vocábulos em si mesmos. Não sei se os portugueses passam pelo mesmo problema, mas o fato é que, até os anos 30, todo ator brasileiro imitava sotaque português para ser respeitado e, hoje, nossa influência em Portugal é total. A telenovela entra lá, e não adianta o intelectual português ficar contra, porque o povo acha engraçado o jeito de a gente falar, e termina copiando. Já usam expressões como "estou a dar a volta por cima, o pá!", lá do jeito deles, com sotaque, mas usam.

O estrangeirismo empobrece a língua portuguesa?
De maneira nenhuma. Antigamente, tivemos palavras como porta-seios, uma coisa muito feia, que felizmente foi substituída pelo galicismo "sutiã". Toda língua é invadida e, como mulher, fecundada.
  De vez em quando a nossa leva na bunda, mas nada que, lavada, não fique novinha. Houve tempo em que o galicismo era uma aberração. Não se podia escrever "amante", mas "amásia". Era assustador.
  Uma vez, era menino, escrevi um conto em que um cara sai pela rua gritando: "Assassinato! Assassinato!" Quiseram que eu colocasse, por respeito à língua, "assassínio", pra evitar o "galicismo"... Quem sai à rua gritando "Assassínio!" é bicha.

Os excessos, como sale, delivery ou 50% off não incomodam a você?
O estrangeirismo não me incomoda. É evidente que essa coisa pouco natural de importar outra língua é muito Barra da Tijuca [bairro da elite carioca], é esse negócio de Estátua de Liberdade de gesso colocada na frente da porta. Pode haver a penetração que quiser, mas é preciso fazer as coisas que nos são naturais. O cara que use delivery com as nega dele. Eu, por exemplo, escrevo aquilo que chega até mim, naturalmente. Devo ter sido a primeira pessoa a escrever whisky na forma "uísque". E ficou. Uso "saite" no lugar de site, que já está consagrada. Os portugueses usam "sítio" e é legítimo.
  A língua é assim, arbitrária. Se dependesse só do meu arbítrio, aí eu faria uma moção pros órgãos oficiais. Não há porquê do Banco do Brasil usar home delivery quando poderia simplesmente fazer "entrega em domicílio". Os órgãos oficiais brasileiros não podem fazer esse tipo de coisa.

Qual o caminho para escrever bem?
Escrever bem é expressar-se. Usar sujeito, verbo, predicado e, a partir daí, fazer todas as variações. Não deixo margem à dúvida quando digo "um homem de terno branco atravessava a rua num dia de domingo". Mas jamais escreveria a frase pomposa do Machado de Assis que está lá na Academia [Brasileira de Letras]. Nem improvisada foi, pois estava num poema dele. "A glória que fica eleva, honra e consola". As palavras não têm a menor hierarquia. Quando se diz "a glória que fica" já acabou a frase, já se sabe que é com a ABL, ela está se referindo às glórias literárias. "Eleva" e "honra" são dispensáveis e nem dá para saber o que uma glória consola: da tremedeira das mãos, de doença? Veja, no entanto, um escritor como Camões. Ao se dirigir ao rei Dom Sebastião, o poeta afirma que "a disciplina militar prestante / não se aprende, senhor, na fantasia, / sonhando, imaginando ou estudando, / senão vendo, tratando e pelejando". Repare que ele não diz "tratando, pelejando e vendo" — pois seria o caso de um sujeito que sai na porrada sem pensar. Quem não sabe escrever não cria esse tipo de hierarquia, pouco importa. Quando uma hierarquia não é tão precisa entre as palavras, o sujeito quebra a cara. Nenhuma palavra é gratuita. Um texto, por exemplo, não pode "condenar" algo quando na verdade seu autor pretendia dizer "evitar". Não.

É possível escrever bem sem ler muito?
Não!

Mas é possível desenvolver um instinto natural para escrever bem?
O instinto pode levar a escrever, mas uma pessoa simplória tende a ter um discurso simplório. Quando escrever, fará um texto simplório. Quanto mais formas de escrita você conhecer, mais habilidade terá em sua própria escrita. Sei que há quem nos desminta. Outro dia, peguei dois volumes de Rubem Braga. Um feito quando ele tinha 25 anos e outro aos 40, já embaixador no Chile. Ambos são de uma precisão, mesmo em 20 linhas. Eu, que não gosto de enfeiar com sinais gráficos o que escrevo, por vezes vejo que as coisas que faço vão ficando complexas e sou obrigado a usar travessão e intercalações para deixar tudo mais claro. Rubem Braga não faz nada disso. É de uma densidade de quem não quer nada.

É atribuído a você um texto que circula na internet, uma apologia ao palavrão. Terem acreditado que se tratava de um texto de sua autoria o ofendeu em que medida? 
É a pior coisa pegarem um texto que não é seu, que você escreveria melhor, e atribuir a você. Já escrevi muito sobre palavrão, e não para fazer gracinha. Em 1978, quando fiz a tradução de A Volta ao Lar, do Harold Pinter, O Globo veio em cima, dizendo que eu inseri palavrões para torná-la picante, comercial ou subversiva. Escrevi um artigo enorme contestando. Tudo que penso sobre o assunto está lá. Não preciso fazer gracinha com a questão. Mas internet é terra de ninguém. Não fiquei ofendido, nem fui lá reclamar. Isso me mata de tédio.

 
Millôr Fernandes, Luiz Costa Pereira Junior e Marcos Antonio Araujo
Enviado por Germino da Terra em 11/01/2014
Alterado em 11/01/2014
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