Segue o fragmento duma longa entrevista de Zygmunt Bauman a Benedetto Vecchi cujo tema central é a identidade esgarçada de variadas maneiras na era pós-moderna; ali o sociólogo polonês fala dos embaraços da essência íntima ser-se; nesse trecho abaixo, ele diz do mútuo sentimento oposto na relação a dois e a capacidade de o atual vale-tudo predominante moldar formas restritas em fôrma padronizada...
Sobre as relações amorosas, por Zygmunt Bauman em Identidade — entrevista a Benedetto Vecchi traduzida por Carlos Alberto Medeiros e publicada por Jorge Zahar Editor Ltda. (...) Nesse reembaralhamento, até as formas básicas de relacionamento social estão passando por uma mutação. Das relações amorosas à religião, tudo se torna instável, líquido. Mas como é que estão mudando as relações amorosas? Aqui você apontou outra ambivalência formidável de nossa líquida era moderna. As relações interpessoais, com tudo o que as acompanha — amor, parcerias, compromissos, direitos e deveres mutuamente reconhecidos —, são simultaneamente objetos de atração e apreensão, desejo e medo; locais de ambiguidade e hesitação, inquietação, ansiedade. Como apontei em outro texto (Amor líquido), depois do “Homem sem qualidades” de Robert Musil veio o nosso “homem sem vínculos” líquido-moderno. A maioria de nós, na maior parte do tempo, tem uma opinião ambígua sobre essa novidade que é “viver livre de vínculos” — de relacionamentos “sem compromisso”. Nós os cobiçamos e os tememos ao mesmo tempo. Não voltaríamos atrás, mas nos sentimos pouco à vontade onde estamos agora. Estamos inseguros quanto a como construir os relacionamentos que desejamos. Pior ainda, não estamos seguros quanto ao tipo de relacionamentos que desejamos... Creio que Erich Fromm captou esse dilema em sua essência quando observou que “a satisfação no amor individual não pode ser obtida ... sem uma verdadeira humildade, coragem, fé e disciplina” — para em seguida acrescentar, com tristeza, que, “numa cultura em que essas qualidades são raras, atingir a capacidade de amar continua sendo uma rara realização”. Amar significa estar determinado a compartilhar e fundir duas biografias, cada qual portando uma carga diferente de experiências e recordação, e cada qual seguindo o seu próprio rumo. Justamente por isso, significa um acordo sobre o futuro e, portanto, sobre um grande desconhecido. Em outras palavras, como Lucan observou dois milênios atrás e Francis Bacon repetiu muitos séculos depois, significa fornecer reféns ao destino. Também significa fazer-se dependente de outra pessoa dotada de igual liberdade de escolha e da vontade de seguir essa escolha — e portanto cheia de surpresas, imprevisível. Meu desejo de amar e ser amado só pode se realizar se ser confirmado por uma genuína disposição a entrar no jogo para o que der e vier, a comprometer a minha própria liberdade, caso necessário, para que a liberdade da pessoa amada não seja violada. No Simpósio de Platão, Diotima de Mantinea (ou seja, “a profetisa Temeadeus da Cidade dos Profetas”) enfatiza para Sócrates, com a plena concordância deste, que “o amor não é para o belo, como você pensa”. “É para gerar e nascer no belo.” Amar é ter o desejo de “gerar e procriar”, e assim aquele que ama “busca e tenta encontrar a coisa bela em que possa gerar”. Em outras palavras, não é no anseio por coisas já prontas, completas e finalizadas que o amor encontra o seu significado, mas no impulso a participar da transformação dessas coisas, e contribuir para elas. O amor é semelhante à transcendência. É apenas outro nome para o impulso criativo, e como tal é repleto de riscos, como o são todos os processos criativos, que nunca têm certeza do lugar em que vão terminar. Acabamos com um paradoxo. Começamos guiados por uma esperança de solução — apenas para encontrarmos novos problemas. Buscamos o amor para encontrarmos auxílio, confiança, segurança, mas os labores do amor, infinitamente longos, talvez intermináveis, geram os seus próprios confrontos, as suas próprias incertezas e inseguranças. No amor, não há ajustes imediatos, soluções eternas, garantias de satisfação plena ou vitalícia, ou de devolução do dinheiro no caso de a plena satisfação não ser instantânea e genuína. Todos os recursos pagos para evitar os riscos com que a nossa sociedade de consumo nos acostumou estão ausentes no amor. Mas, seduzidos pelas promessas dos comerciantes, perdemos as habilidades necessárias para enfrentar e vencer os riscos por nós mesmos. E assim tendemos a reduzir os relacionamentos amorosos ao modo “consumista’, o único com que nos sentimos seguros e à vontade. O “modo consumista” requer que a satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor exclusivo, a única “utilidade”, dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação. Uma vez interrompida a satisfação (em função do desgaste dos objetos, de sua familiaridade acessiva e cada vez mais monótona ou porque substitutos menos familiares, não testados, e assim mais estimulantes, estejam disponíveis, não há motivo para entulhar a casa com esses objetos inúteis. Um dos presentes de Natal eternamente favoritos das crianças inglesas é um cachorro (em geral um filhote). Sobre a condição atual desse hábito, Andrew Morton recentemente comentou que os cães, conhecidos por serem bastante adaptáveis aos ambientes e às rotinas dos homens, deveriam “começar a reduzir a sua expectativa de vida de aproximadamente 15 anos para algo mais em sintonia com os breves instantes de atenção modernos: digamos, cerca de três meses” (esse é o tempo médio que se passa antes que os cães alegremente recebidos sejam jogados na rua). Uma alta porcentagem das pessoas que se livram dos seus cães o faz “a fim de abrir caminho para outros cães, mais na moda”. Tal como com os animais de estimação, assim também com os seres humanos de estimação. Barbara Ellen, colunista do Observer Magazine, discorre sobre “largar o parceiro” como se fosse um acontecimento normal. “Sempre nos dizem que a morte é uma parte importante da vida. Seguindo o mesmo raciocínio, o rompimento não seria uma parte importante da relação?” O rompimento, ao que parece, é visto agora como um acontecimento tão “natural” quanto a morte é para a vida — já que os relacionamentos, um dia almejados pelos mortais como a porta de passagem para a eternidade, tornaram-se eles próprios fissíparos e mortais. Relacionamentos atormentados, na verdade, por uma expectativa de vida muitas vezes menor do que a dos indivíduos que os estabeleceram apenas para rompê-los novamente. Outro espirituoso colunista britânico sugeriu que casar-se é como “embarcar numa viagem marítima numa jangada feita de mata-borrão”. Animais ou humanos, parceiros ou de estimação — será que importa? Todos eles estão aqui pelo mesmo motivo: satisfazer (pelo menos é para isso que os mantemos). Se não o fizerem, não têm finalidade alguma e portanto nenhuma razão para estarem aqui. Anthony Giddens declarou brilhantemente que a antiga ideia romântica de amor como uma parceria exclusiva “até que a morte nos separe” foi substituída, no decorrer da libertação Individual, pelo “amor confluente” — uma relação que só dura enquanto permanece a satisfação que traz a ambos os parceiros, e nem um minuto mais. No caso dos relacionamentos, você deseja que a “permissão de entrar” venha acompanhada da “permissão de sair” no momento em que não veja mais razão para ficar. Giddens considera libertadora essa mudança na natureza dos relacionamentos: os parceiros agora estão livres para saírem em busca de satisfação em outro lugar se não conseguem obtêm, ou não a obtêm mais, com a relação atual. O que ele não mencionou, contudo, é que, como o início de um relacionamento exige consentimento mútuo, ao passo que a decisão de um dos parceiros é suficiente para encerrá-lo, toda parceria está fadada a ser permanentemente derrotada pela ansiedade: e se a outra pessoa se aborrecer antes de mim? Outra consequência não percebida por Giddens é que a disponibilidade de uma saída fácil é em si um terrível obstáculo à satisfação no amor. Torna o tipo de esforço de longo prazo que essa satisfação exigiria muito menos provável, tendente a ser abandonado bem antes que uma conclusão gratificante possa ser alcançada, rejeitado como algo que não vale a pena ou desprezado em função de um preço que ninguém vê razão para pagar em virtude dos substitutos aparentemente mais baratos disponíveis no mercado. Três meses é mais ou menos o tempo máximo durante o qual os jovens trainees da sociedade de consumo são capazes de aproveitar e depois tolerar a companhia de seus animais de estimação. É provável que eles levem esse hábito adquirido tão cedo para a vida adulta, em que os cães são substituídos por seres humanos como objetos do amor. Morton culpa o encurtamento do “breve instante de atenção”. Seria possível, porém, procurar as causas em outro lugar. Se os nossos ancestrais eram moldados e treinados por suas sociedades como, acima de tudo, produtores, somos cada vez mais moldados e treinados como, acima de tudo, consumidores, todo o resto vindo depois. Atributos considerados trunfos num produtor (aquisição e retenção de hábitos, lealdade aos costumes estabelecidos, tolerância à rotina e a padrões de comportamento repetitivos, boa vontade em adiar a satisfação, rigidez de necessidades) se transformam nos vícios mais apavorantes no caso de um consumidor. Se permanecessem ou caso se tornassem comuns, seriam como o dobre de finados da economia centrada no consumidor. A educação de um consumidor não é uma ação solitária ou uma realização definitiva. Começa cedo, mas dura o resto da vida. O desenvolvimento das habilidades de consumidor talvez seja o único exemplo bem-sucedido da tal “educação continuada” que teóricos da educação e aqueles que a utilizam na prática defendem atualmente. As instituições responsáveis pela ”educação vitalícia do consumidor” são incontáveis e ubíquas — a começar pelo fluxo diário de comerciais na TV, nos jornais, cartazes e outdoors, passando pelas pilhas de lustrosas revistas “temáticas” que competem para divulgar os estilos de vida das celebridades que lançam tendências, os grandes mestres das artes consumistas, até chegar aos vociferantes especialistas/conselheiros que oferecem as mais modernas receitas, respaldadas por meticulosas pesquisas e testadas em laboratório, com o propósito de identificar e resolver os “problemas da vida”. Vamos nos deter por um momento nos peritos especializados em escrever receitas para as relações humanas, e particularmente para as parcerias amorosas. Os “casais semisseparados” devem ser louvados como “revolucionários em matéria de relacionamento que romperam a sufocante bolha do casal”, escreveu um deles numa revista bastante respeitada e amplamente lida. Outro especialista/conselheiro informa aos leitores que, “ao se comprometer, embora sem muito ânimo, lembre-se de que é provável que você esteja fechando a porta para outras possibilidades românticas talvez mais satisfatórias e compensadoras”. Outro especialista sugere que os relacionamentos, tal como os carros, devem passar periodicamente por um teste de valor e serem retirados de circulação caso os resultados sejam negativos. Mas outro especialista consegue ser ainda mais insensível: “As promessas de comprometimento são desprovidas de sentido a longo prazo ... Tal como outros investimentos, alternam períodos de alta e de baixa”. E assim, se você quer “relacionar-se”, mantenha distância. Se deseja obter satisfação com o convívio, não estabeleça nem exija compromissos. Mantenha todas as portas abertas o tempo todo. Levando-se tudo isso em consideração, o que aprenderíamos com os especialistas em relacionamentos é que o comprometimento, particularmente a longo prazo, é uma armadilha a ser evitada, mais que qualquer outro perigo, por aqueles que buscam “relacionar-se”. O breve instante da atenção humana encolheu — porém mais seminal ainda é o encolhimento do tempo disponível para prever e planejar. O futuro sempre foi incerto, mas o seu caráter inconstante e volátil nunca pareceu tão inextricável como no líquido mundo moderno da força de trabalho “flexível”, dos frágeis vínculos entre os seres humanos, dos humores fluidos, das ameaças flutuantes e do incontrolável cortejo de perigos camaleônicos. Nunca se sentiu com tanta intensidade que o futuro é, como sugeriu Emmanuel Levinas, “o outro absoluto” — inescrutável, impermeável, incognoscível e, por fim, além do controle humano. Num mundo em que o desprendimento é praticado como urna estratégia comum da luta pelo poder e da autoafirmação, há poucos pontos firmes da vida, se é que há algum, cuja permanência se possa prever com segurança. Assim, o “presente” não compromete o “futuro”, e não há nada nele que nos permita adivinhar, muito menos visualizar, a forma das coisas que estão por vir. O pensamento e, mais ainda, os compromissos e as obrigações de longo prazo parecem, de fato, “sem sentido”. Pior ainda, parecem contraproducentes, realmente perigosos, um caminho tolo a se seguir, um lastro que precisa ser atirado ao mar e que teria sido melhor, afinal de contas, nem ter sido trazido a bordo. Todas essas notícias são preocupantes, aterradoras sem dúvida. Os golpes atingem diretamente no coração o modo humano de “estar no mundo”. Afinal de contas, a essência da identidade — a resposta à pergunta “Quem sou eu?” e, mais importante ainda, a permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada, qualquer que seja — não pode ser constituída senão por referência aos vínculos que conectam o eu a outras pessoas e ao pressuposto de que tais vínculos são fidedignos e gozam de estabilidade com o passar do tempo. Precisamos de relacionamentos, e de relacionamentos em que possamos servir para alguma coisa, relacionamentos aos quais possamos referir-nos no intuito de definirmos a nós mesmos. Mas em função dos comprometimentos de longo prazo que eles sabidamente inspiram ou inadvertidamente geram, os relacionamentos podem ser, num ambiente líquido moderno, carregados de perigos. Mas de qualquer forma precisamos deles, precisamos muito, e não apenas pela preocupação moral com bem-estar dos outros, mas para o nosso próprio bem, pelo benefício da coesão e da lógica de nosso próprio ser. Quando se trata de iniciar e manter um relacionamento, o medo e o desejo lutam para obter o melhor um do outro. Lutamos veementemente pela segurança que apenas um relacionamento com compromisso (e, sim, um compromisso de longo prazo!) pode oferecer — e no entanto tememos a vitória não menos que a derrota. Nossas atitudes em relação aos vínculos humanos tendem a ser penosamente ambivalentes, e as chances de resolver essa ambivalência são hoje em dia exíguas. Não há um modo fácil de escapar a essa sorte, nem certamente uma cura radical viável para os tormentos da ambivalência. E, portanto, há uma busca fanática e furiosa por soluções de segunda classe, meias soluções, soluções temporárias, paliativos, placebos. Servirá qualquer coisa que possa afastar as dúvidas corrosivas e as questões irrespondíveis, postergar o momento do ajuste de contas e da verdade — e assim permitir que permaneçamos em movimento ainda que nosso destino esteja, é o mínimo que se pode dizer, envolto na neblina. Se não é possível confiar na qualidade, quem sabe a salvação não está na quantidade? Se todo relacionamento é frágil, quem sabe o recurso de multiplicar e acumular relacionamentos não vai tornar o terreno menos traiçoeiro? Graças a Deus você pode acumulá-los — justamente porque eles são, todos eles, frágeis e descartáveis! E assim buscamos a salvação nas “redes”, cuja vantagem sobre os laços fortes e apertados é tornarem igualmente fácil conectar-se e desconectar-se (como explicou recentemente um rapaz de 26 anos de Bath, o “namoro na internet” é preferível aos “bares de solteiros” porque, se algo der errado, “basta ‘deletar”’ — num encontro cara a cara, não é possível descartar-se com tanta facilidade do parceiro indesejado). E nós usamos nossos celulares para bater papo e enviar e receber mensagens, de modo que possamos sentir permanentemente o conforto de “estar em contato sem os desconfortos que o verdadeiro “contato” reserva. Substituímos os poucos relacionamentos profundos por uma profusão de contatos pouco consistentes e superficiais. Imagino que os inventores e propagadores dos “celulares visuais”, planejados para transmitir imagens além de vozes e mensagens escritas, calcularam mal: não vão encontrar um mercado de massa para suas engenhocas. Creio que a necessidade de olhar no olho o parceiro do contato virtual”, de entrar no estado de proximidade visual (ainda que virtual), privará o papo por celular da principal vantagem pela qual ele é entusiasticamente adotado pelos milhões que anseiam “estar em contato” e, ao mesmo tempo, manter distância... O que esses milhões anseiam é mais bem atendido pelo “envio e recepção de mensagens”, que elimina da troca a simultaneidade e a continuidade, impedindo-a de se tornar um diálogo genuíno e, portanto, arriscado. O contato auditivo vem em segundo lugar. É um diálogo, mas felizmente livre do contato visual, aquela ilusão de intimidade portadora de todos os perigos de traição involuntária (por gestos, mímica, expressão do olhar) que os interlocutores prefeririam manter excluída do “relacionamento”. Esse modo reduzido de relacionar-se, “menos importuno”, se ajusta a todo o resto — ao líquido mundo moderno das identidades fluidas, o mundo em que o aspecto mais importante é acabar depressa, seguir em frente e começar de novo, o mundo de mercadorias gerando e alardeando sempre novos desejos tentadores a fim sufocar e esquecer os desejos de outrora. O prêmio é a liberdade de seguir adiante, mas uma opção que não temos a liberdade de fazer é parar de nos movimentar. Como Ralph Waldo Emerson já advertia muito tempo atrás, se você está esquiando sobre o gelo fino, a salvação está na velocidade. (...) Zygmunt Bauman
Enviado por Germino da Terra em 22/11/2013
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