Depois daquilo tudo que passou em junho, por Marcus Vinícius Faustini
Narrar as manifestações de rua, considerando a mobilizadora força urbana da juventude e das periferias, é uma forma de prolongar a potência dos acontecimentos
Envelhecemos dez anos no último mês, todos. Ninguém ficou de fora, fomos todos carregados pelo fluxo do mar de gente nas ruas neste junho que passou. Contradições foram abertas, atores sociais reposicionados. Outros, mais antigos, encorajados e com sobrevida. Potentes novos atores entraram em cena com dicção política, reposicionando espaços de disputa de imaginário no país. E tudo em intensidade e extensão capazes de reconfigurar nosso olhar ao longo dos dias. Envelhecemos. Não no sentido imediato da palavra, de perder potência, nem numa ingênua formulação publicitária de ganhar sabedoria. Envelhecemos pela oferta de acontecimentos expressivos em um pequeno espaço-tempo e porque todos foram obrigados a tomar partido. Em casa, na rua ou nas redes sociais foi preciso tomar decisões, ter opinião. Ninguém conseguiu ficar invisível e tudo virou um corpo só, o corpo da multidão. Os atores sociais mais clássicos da estrutura de poder no país tentaram controlar os desejos, os discursos e os direcionamentos da multidão e a narrativa dos acontecimentos. E isso nos coloca num esforço maior de compreensão.
Não é tão fácil explicar o que aconteceu. A quantidade de produção de textos on-line, publicados ou lidos em espaços de debate mostra não uma explicação, mas uma disputa de posicionamentos. E por isso também envelhecemos, e isso é bom. Assim, encorajo-me a falar de junho como memória, depois daquilo tudo. O nome que uso como bússola para falar do assunto, pego emprestado de uma peça que vi nos meus tempos de estudante de teatro, que falava através de memórias pessoais sobre os anos de chumbo da ditadura. Acredito que a intensidade percebida naquele espetáculo é necessária para olhar para este junho. E depois daquilo tudo, o que vejo é uma potência que precisa ser narrada para disputar com a ideia difundida de que o que aconteceu foi apenas extraordinário, sem foco e com pauta difusa. Suspeito que esta narrativa seja para controlar a potência dos novos atores que estão no centro disparador desses acontecimentos. Para visibilizá-los, sugiro para sua bússola, caro leitor, dois campos de atores sociais que legitimaram seus discursos e pautas nas ruas e são importantes para a radicalização da democracia e para garantia de direitos. Muita gente disse que esse movimento não tinha líderes, o que não é verdade. Devemos aos coletivos de juventude urbana — de favelas, mobilidade, arte, direitos das mulheres, movimento negro, LGBT, anarquistas, movimento de luta por moradia — o núcleo duro das mobilizações. A vibrante cena social e cultural do país está nestes coletivos de vida e ação, com forte presença da juventude, que o poder público prefere não reconhecer como parceiros das necessárias transformações da sociedade, canalizando energia apenas para acordos com o grande capital. A liderança que esses grupos têm, e a que me refiro, é a capacidade de inventar ambientes permanentes de formas de vida e mobilização de pessoas. São ambientes confiáveis, abertos, com invenção de afetos, o melhor ingrediente para formação política. Junho também trouxe um aprofundamento da capacidade de mobilização de associações, organizações, coletivos culturais e sociais, e sujeitos autônomos nas favelas e periferias das grandes cidades. Dizer que eles acordaram agora é uma tentativa de despotencializar o histórico de lutas e ações nestes territórios. Entretanto, a presença nas passeatas em grupos e com dicção própria ou em ações específicas (ato na Maré contra Estado que mata, Rocinha, Vidigal, caminhada na periferia de São Paulo etc.) coloca como força urbana importante, que nos traz frescor, a unidade desses grupos na luta por suas pautas. É um passo necessário para a agenda das favelas ser de fato realizada pelo Estado. Por outro lado, contribui de forma exemplar para romper com a representação no senso comum de que os atores sociais da favela são ingênuos ou despreparados e também como importante quebra na narrativa que procura consolidar a ideia que está indo tudo bem nos territórios populares apenas com a agenda dos megaeventos e presença da polícia. Arrisco-me a dizer, não diminuindo a importância de outros grupos presentes no mar de junho e também atento às contradições do que aconteceu, que devemos muito a estes dois campos de sujeitos sociais, por suas ações precisas e permanentes para luta dos direitos democráticos no país. Afinal, depois daquilo tudo, eles continuam lá, potentes. Neste sentido, narrar as ruas de junho, considerando estes sujeitos, para além da narrativa hegemônica imagética dos acontecimentos, é uma forma de durar a potência. A literatura, de memórias e afetos, pode continuar esta duração. A presença deste debate na Festa Literária Internacional de Paraty dispara este sentido. Eis para que serve a literatura. Marcus Vinícius Faustini é autor do “Guia afetivo da periferia” e participou da mesa “Narrar a rua”, na Festa Literária internacional de Paraty, ao lado de Pablo Capilé, Fabiano Calixto e Juan Arias Marcus Vinícius Faustini
Enviado por Germino da Terra em 20/07/2013
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