retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A ilha dos privilegiados, por Catharina Wrede (catharina.wrede@oglobo.com.br), n’O Globo de domingo, 16.6.2013

 
A boate Isla Privilège, em Angra dos Reis, é destino dos jovens muito ricos que costumam gastar cerca de R$ 6 mil por noite
 
Às 22h45m de um sábado, nas exatas coordenadas marítimas -22º 57’ 44.44” S e -44º 24’ 28.20” W, em Angra dos Reis, um jovem magro, nariz adunco e camisa polo justa bradava para um grupo uniformizado:
  — Essa passagem é pra VIP, ok? O resto faz fila ali. A expectativa é alta, a noite promete, a casa vai bombar.
  Apesar de batizada na cartografia mundial como Ilha de Cunhembebe Mirim (conhecida por muitos como Ilha da Mandala), desde 2011 a pala­vra “ilha” caiu em desuso por ali. Agora é Isla, em espanhol. Mais pre­cisamente, Isla Privilège, “o club mais exclusivo do Brasil”; diz o site da casa. Empreendimento do grupo mi­neiro Privilège que, além de An­gra, reúne filiais em Juiz de Fora e em Búzios o pedaço de terra cercado de água por todos os lados é o ende­reço da diversão na Costa Verde dos jovens muito ricos do eixo Rio-SP. VIP, como se sabe desde que clube era chamado de boate, significa Very Important Person. E na Isla Privilège eles chegam em bando.
  Marcada para as 23h, a festa da­quela noite, a Mob Island o portu­guês está definitivamente fora de moda —, uma edição em terra firme do cruzeiro de música eletrônica Mob Festival, ficou às moscas até as 2h. Lá dentro, só o pessoal cujo po­der aquisitivo não permite uma lan­cha no patrimônio e, logo, não pode ficar fazendo a “pré-night” no pró­prio barco. Para eles, há uma trainei­ra que vai e volta do Frade (grande condomínio de casas no continen­te), a dez minutos da ilha.
  Já para quem é, de fato, privilegia­do, o ritual é outro: chega-se por vol­ta das 23h30m de lancha ou iate (que quanto mais se assemelhar a um gi­gantesco tênis Nike flutuante, ema­nando do casco uma luz neon azul capaz de deixar o mar com aparência de piscina, melhor) joga-se a âncora a poucos metros do club e en­tornam-se champagne, vodka e whisky até umas 2h, quando os ma­rinheiros começam a atracar no píer da ilha. Perdão, isla. Nesse ínterim, além de beber, os grupos de dez ou 15 jovens ligam o som das lanchas na máxima potência. Há, nesse mo­mento, uma competição de curadoria musical entre as embarcações: ouvia-se aos berros de Naldo a hip hop americano, passando por funk antigo, Michel Teló e MC Anitta. Ne­nhum acorde, porém, de deep hou­se, estilo que seria tocado na noite.
microssaia é uniforme
  Às 1h15m, um grupo de seis mulheres saltava de um barco. Metade loiras, metade morenas. Não há cabelos on­dulados na Isla Privilège. Apesar do vento cortante vindo do mar que atin­ge Angra dos Reis nesta época do ano e da temperatura local ser de cerca de 15 graus, o uniforme era o mesmo: microssaia colada (nas versões lante­joula ou lisa, em que a dobrinha do bumbum chega a se insinuar para fo­ra do pano); um cinto de metal tipo armadura; top decotado e salto fino que, vez ou outra, acabava enterrado no vão que se forma entre as madeiras do deque, tornando o andar claudi­cante e lento, num desfile menos gla­mouroso do que elas gostariam.
  Entre gritinhos histéricos e cerca de três fotos por minuto nos iPhones, surgem dois homens (camisa polo colada, calça jeans justa, cordão prateado e tênis de marca) que cumprimentam mecanicamente. De súbito, um dos rapazes comenta, orgulhoso:
  — Estou há quatro dias na night. Nem sei como estou em pé. Ontem tava de­mais no Dentista (praia na Ilha da Gi­póia cujo esporte tradicional é estacio­nar uma lancha colada na outra e ver quem tem o barco maior). Thor tava lá. As meninas reagem:
  — Eu sei. Ele vai chegar aí hoje. Vem todo mundo. Isso aqui vai lotar.
  Com decoração rústico-chique, a Isla Privilège não tem teto. As duas pistas de dança, os quatro bares, restaurante, camarotes e lounges externos são co­bertos por grandes tendas de lona branca, dessas similares às que enfei­tam as festas rave, e uma iluminação azul toma conta. Na área externa, mesi­nhas e cadeiras de madeira ao estilo de Bali cercam a pista de dança. Mas nin­guém senta impunemente na Isla Pri­vilège. Para se ter o conforto de apoiar a bebida ou descansar o pé do salto 15, é preciso abrir a carteira e reservar os es­paços com antecedência.
  Privilegiado que se preze só vai de ca­marote. Naquela noite, os chiqueiri­nhos VIP’s estavam saindo a R$ 10 mil no andar de baixo e a R$ 5 mil no de ci­ma. Incluso no pacote, algumas garra­fas de vodka, uísque e champagne, e o direito de convidar cerca de dez pesso­as. Para marcar quem podia entrar ali dentro, uma pulseirinha rosa era dada, o que fazia com que antes de dar papo para algum homem, as moças olhas­sem primeiro para o pulso e, só depois, para os olhos do rapaz.
  Às 3h, a festa encheu e o DJ alemão Phonique fez a pista soltar gritinhos de “uhu” com seu deep house. Se a música é moderna, a droga é velha: o lança-perfume rola solto lá dentro. E o flerte é tímido, sem curiosidade. Pelo visto, o público não cheira cangote. Grupo que chega junto permanece junto, sem es­paço para uma interação mais caliente na isla.
  Numa pequena fila que se formava na entrada dos camarotes, as amigas Cindy Lopes, de 18 anos, Paloma Gui­marães, de 23, e Isabela Pfeil, de 18, aguardavam serem pescadas do mar de anônimos por um amigo, para entra­rem nos cercadinhos de luxo. Ao longo da noite e do começo do dia (a esbórnia na isla rola até as 10h) a fila não se des­fez, variando apenas de rostos. Como junto com os camarotes ganha-se bebi­da, a maioria das pessoas quer usufruir da regalia dos outros:
  — Já gastamos dinheiro com roupa, sapato, manicure. Não dá pra pagar be­bida também, né? dizia Paloma.
  Com casa no Frade e lancha, o enge­nheiro carioca Rodrigo Mesquita, 33 anos, só vai de camarote. Naquele sá­bado, ele era um dos donos dos qua­dradinhos da parte superior do club.
  — Normalmente gasto uns R$ 6 mil por noite contava.
  Quando indagado se o valor pago em menos de 24 horas valia a pena, fez uma pausa e disse:
  — Dependendo da noite vale, sim.
  Aqui tem todo esse glamour de che­gar de lancha, é diferente do Rio.
  A dobradinha “som diferenciado e público selecionado” era a expli­cação mais frequente dada pelos frequentadores para justificar valo­res como o de uma garrafa de Moët & Chandon a R$ 449, energético a R$ 19,90, caipifruta a R$ 28,90 e uma garrafinha d’água a R$ 8,90. Segundo um dos barmen da casa, o item do cardápio que mais sai ali é o combo de uma garrafa de vodka Cïroc e seis latinhas de Red Bull, a R$ 499. Mesmo quem não tinha pa­go para sentar, parecia não se im­portar com preços. Grupos de três ou quatro amigos pegavam a ban­deja do combo e a colocavam no chão da pista, sem cerimônia. Até as 5h30m, já tinham sido consumidas cerca de 20 garrafas de Moët & Chandon, além de duas garrafas de Moët & Chandon Impérial Brut Je­roboam (de três litros), pela baga­tela de R$ 2.999,90 cada.
Numa das mesas, duas meninas debatiam a frequência da casa:
  — Isso aqui não é o club mais exclu­sivo do Brasil. Tem até gente de Caxi­as. Tem classe alta, média e baixa. A maioria aqui vem na aba de quem tem grana e comprou camarote.
  — Que isso! Para vir aqui, tem que chegar de barco, para começar. Vou te levar para fazer um tour pelo Rio para você saber o que é classe baixa.
  — Vai me levar na Rocinha?
  — Não, querida, a Rocinha é classe média.
Catharina Wrede
Enviado por Germino da Terra em 13/07/2013
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