retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Aquela nova literatura, por Daniel Galera no Segundo Caderno d’O Globo em 27.5.2013

Com a popularização da internet, a literatura passará por uma revolução. O romance morrerá e cederá espaço ao conto, que terá melhor aceitação para um público com déficit de atenção, adaptado à velocidade das novas tecnologias. Mas até mesmo o conto estará irreconhecível daqui a cinco ou dez anos, deformado pelo impacto do hipertexto e dos novos suportes eletrônicos de publicação.

O hipertexto texto que explora o recurso do hiperlink, permitindo acesso instantâneo a outras partes desse mesmo texto ou de ou­tros textos e conteúdos enterrará a linearidade e quase todas as estruturas narrativas fundamentais existentes hoje. Os múltiplos caminhos de leitura de “O jogo da amarelinha” [romance de Julio Cortázar de 1968 que disponibiliza leituras salteadas feito a brincadeira infantil] passarão a ser regra, ramifi­cando-se para além dos limites físicos do livro de papel. Os limites de um livro poderão ser um site, um conjunto de sites, a internet inteira, o mundo inteiro. A participação do leitor não se reduzirá a virar páginas ou a escolher onde clicar ele poderá rees­crever trechos, adicionar ou apagar conteúdo, inter­vir de maneiras ainda não previstas. A figura do nar­rador, tão tematizada e submetida a experiências na literatura pós-modernista, atingirá o paroxismo; a autoria deixará aos poucos de fazer sentido, até ser abolida.
  A experiência de leitura na internet é fragmenta­da, uma alternância constante entre vários tipos de texto, eles mesmos fragmentados. As tradições da prosa literária, picotadas e embaralhadas, vicejarão no miniconto, no microconto, no aforismo, nas tira­das irônicas, no trocadilho certeiro, na informação telegrafada.
  A nova narrativa será multimídia. Transitaremos livremente entre texto, voz, música, vídeos, anima­ções, fotos, ilustrações, diagramas. Todas as lingua­gens existentes hoje serão uma só, e com ela virão novas formas de narrar, de insinuar um subtexto, de construir elipses e significados.
  A linguagem escrita, por fim, e se tornará mais su­cinta e veloz; novos jargões, predomínio de siglas e contrações, emoticons, promiscuidade inédita entre alfabetos e idiomas. A linguagem das crianças nos chats é um prenúncio da nova linguagem literária.
Descontando alguma pitadinha de sarcasmo, os cinco parágrafos acima descrevem um conjunto de previsões que apareceram na virada do milênio, com o surgimento e popularização da web, e vigora­ram em muitos sites literários, artigos de imprensa, discussões acadêmicas, e também na mente de muitos novos autores motivados por preocupações formais. Parte delas sobrevive ainda hoje, em mais diluídas ou atualizadas.
  A essa altura do campeonato, com uma distância de mais de década, já não se pode ignorar que a “revolução literária causada pela internet” não ocorreu. Ou até ocorreu, mas não no sentido de modificar a maneira como escrevemos. Ocorrem mudanças profundas na maneira como lemos, con­sumimos e debatemos a literatura. Todavia, mesmo pessoas como eu, que fizeram parte da (perdão) “geração internet” mas nunca chegaram a comprar a ideologia da esperada revolução, às vezes ficam perplexas com o fato de que um conto ainda é um conto e um romance ainda é um romance, de que a evolução das formas e linguagens literárias segue atrelada aos mesmos cânones e tradições, alheia aos novos recursos que a tecnologia torna disponíveis.
  Muitas tendências que costumavam ser associa­das à web, como a escrita autocentrada (o que lá por 1998 alguns chamavam de “egotrip”), podem ter si­do incentivadas pela tecnologia até um ponto, mas são decorrência lógica do modernismo, de uma so­ciedade individualista, e por ai vai. “Por que o ro­mance ainda está aí?” é uma pauta recorrente, e o fato é que está mesmo, nas listas de mais vendidos, nos mais lidos do Skoob, nas premiações, nos favori­tos da crítica, nos fenômenos “Harry Potter” e Ro­berto Bolaño, na constatação de que a literatura de confronto pouco recorre ao digital para tentar sacu­dir o cânone e os leitores.
  Mas é um erro dizer que a nova narrativa dos tem­pos digitais não se realizou. Ela germinou com os primeiros micreiros, se ramificou nos e-zines e blogs, e hoje se encontra sobretudo nas redes soci­ais, que incorporaram quase todas aquelas pre­visões em suas timelines. Quem intuiu aquela nova literatura intuiu o Facebook e assemelhados, os ver­dadeiros remos da narrativa fragmentada, multimídia e quase instantânea, fundamentada no hiper­link, onde todo usuário é um pouco personagem e contador de histórias. A unidade estética e o senso de narrativa de alguns Tumblrs são admiráveis.
  Enquanto isso, o conto e o romance habitam seu ve­lho jardim, e sabe lá quantas voltas a História teria de dar para tomá-los substituíveis. Talvez haja algo pere­ne em suas respectivas formas, cadências e poderes imersivos, características em grande parte imunes às novas tecnologias de comunicação, e das quais não abriremos mão tão facilmente.
Daniel Galera
Enviado por Germino da Terra em 07/06/2013
Alterado em 08/06/2013
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