A vereda pedagógica do sertão, por Alfredo Monte*, na revista Metáfora
É um fenômeno digno de atenção o fato de que mesmo pessoas que não o leram, conhecem e citam trechos de Grande Sertão: Veredas (um exemplo assaz citado: “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam...”). Para aqueles que o leram decerto é uma fonte inesgotável. Podemos, então, encarar o romance de Guimarães Rosa como um “Livro de Sabedoria”, do qual extraímos “ensinamentos”? Isso não equivaleria a enquadrá-lo no território perigoso da “autoajuda”, área lucrativa do mercado editorial, que se dedica a fornecer receitas fast food de como viver melhor, de como aceitar os próprios erros e limites, de como saber envelhecer, e um vasto etc.? Ora, esse filão é apenas a feição atual de uma prática que acompanha o próprio ato de escrever. Cícero (106-43 a.C) já praticava o gênero nos seus tratados sobre a velhice, a amizade, os deveres: “Ao realizar qualquer atividade, três normas são necessárias: que o apetite obedeça à razão; que se considere de que monta seja o projeto a ser executado a fim de não exceder nem diminuir o empenho; finalmente, cuidar que os esforços, quer em relação aos outros, quer em relação a nós, sejam moderados” (Dos Deveres). Por sua vez, Harold Bloom em Onde encontrar a sabedoria? (2004) afirma: “Recorro a três critérios em relação ao que leio e ensino: esplendor estético, força intelectual e sapiência... A mente sempre volta às suas necessidades de beleza, verdade e discernimento (...) os maiores escritores, antigos e modernos, produzem equilíbrios (ainda que precários) que permitem a coexistência da sabedoria prudencial e de certas insinuações de esperança. A “sabedoria prudencial” (que encontramos nos chamados livros sapenciais da Bíblia, entre eles Provérbios e o Eclesiastes), fatalista e até mesmo pessimista, e as “insinuações de esperança”: no intervalo entre as duas posições extremas do pêndulo, talvez possamos encontrar o diferencial com relação a um texto de autoajuda banal, com uma mensagem unívoca e inócua, de um texto literário que opera com o aprendizado do viver. Onde encontrar a sabedoria? Em Grande Sertão: Veredas: “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.” Leitura de formação “Figuro que estava em meu são juízo. Só que andava às tortas, num lavarinto.” Entre tantas leituras críticas (linguísticas, metafísicas, místicas, históricas, sociológicas, psicanalíticas, alegóricas) desde a publicação em 1956, todas plausíveis e pertinentes, muitas delas fascinantes, um aspecto crucial parece ter se perdido um pouco, ou pelo menos não veio à tona com o destaque merecido: a vereda pedagógica de Grande Sertão: Veredas. Há uma filiação literária a que se prende uma boa porção da história de Riobaldo que nos ajuda a entender esse lastro pedagógico: o romance de formação, narrativa que trata da educação de um protagonista. Como afirmava György Lukács no seu clássico A teoria do romance (em que estuda a transformação da epopeia num novo gênero), de 1916, existe um “mau infinito” com relação à nossa percepção existencial: a experiência da vida é por demais fragmentária e dispersa para nos fornecer uma imagem da vida. Assim, o biográfico que preside o romance de formação é o fio-guia no “lavarinto”. As leis desse tipo de romance foram estabelecidas por Goethe nos livros que tratam do personagem Wilhelm Meister (no Brasil, só foi publicado Os anos de aprendizado, de 1795, permanecendo inédito Os anos de peregrinação, de 1821). Ao falarmos de uma “pedagogia” embutida na narrativa de Grande Sertão: Veredas, uma questão importante emerge: já que o romance é a “fala” incessante de Riobaldo, podemos identificar nela algo como o “pensamento” de Guimarães Rosa? Numa entrevista famosa a Günter Lorenz, em 1965, ele chama o narrador-protagonista de “meu irmão Riobaldo”, o que vai de encontro ao que Antônio Cândido (em “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”, um dos Vários Escritos) afirma sobre o jagunço-pensador; para ele, ninguém se reconhece em tipos criados pelo nosso regionalismo literário, por mais admiráveis que sejam como criação ficcional: “No entanto, todos nós somos Riobaldo, que transcende o cunho particular do documento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade, num sertão que é também o nosso espaço de vida. Se o sertão é o mundo, como diz ele a certa altura do livro, não é menos certo que o jagunço somos nós.” Pois é, se o leitor cita o livro, sente que é Riobaldo, sente que o sertão está dentro dele, é porque a leitura nos ensina algo, mesmo porque é difícil imaginar alguém cuja projeção fantasiosa da existência não roce as noções de aventura e jornada, ambas permeadas pela crucial noção de destino: “Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes na minha vida acontece. Eu atravesso as coisas — e no meio da travessa não vejo! — só estava entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.” Nesse ponto também o romance imita a vida, o seu “mau infinito”: o conhecimento ou sabedoria que ele nos proporciona está entranhado no próprio relato. Se tentarmos descobrir qual a sabedoria proporcionada por Grande Sertão: Veredas, “nos centros da nossa confusão”, não dá para deixar de lado a travessia do ser de ação Riobaldo para ficarmos só com o lado do ser da reflexão. Experiência ordenada No entanto, podemos explorar a vereda pedagógica em Grande Sertão: Veredas numa direção mais definida. Professores podem propor aos alunos a história de Riobaldo como uma das mais cabais demonstrações práticas de como a literatura ajuda a ordenar a experiência (como diz Clarice Lispector em A maçã no escuro: “organizar a alma em linguagem”), mesmo se reportando aos elementos caóticos, violentos e desagregadores que estão na base dos nossos conflitos. De fato, o tempo todo Riobaldo acredita que o ato de narrar organiza e dá sentido aos seus conflitos e dilemas, as suas “neblinas”: “Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade.” Um professor que deseje explicar o paradigmático mito platônico da Caverna (que aparece em A República, uma das bases do pensamento ocidental), simbolizando as projeções ilusórias do ser humano, enriquecerá a discussão com a formulação moderna e brilhante de Riobaldo, dentro da sua peculiar “fala”: “Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe como encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber: Mas esse norteado tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sempre o confuso dessa doideira que é (...). Aquilo está no encoberto; mas fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, ou deixar de fazer, fica sendo o falso, e é o errado...”. E o que não poderia fazer um professor ao estudar com seus alunos a psicologia de um personagem que, na hora mesma de fazer o pacto com o demo, não chega a ser visto? A consequência dessa noite em claro nas Veredas-Mortas é ele assumir a chefia do bando de jagunços, tarefa para a qual se mostrava recalcitrante: “... eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mais nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a certa, esta coisa: eu somente queria — ficar sendo...”. Uma discussão sobre individuação pode levar ao papel do herói no sentido do mito, da epopeia, e da visão crítica da época burguesa que nos deu o anti-herói: aquele que é portador do sentido que dá coesão a uma comunidade; aquele que esbarra no sem-sentido das instituições petrificadas. Aquele para quem “toda ação é somente um traje bem-talhado da alma”; aquele para o qual a ação é emperrada pelo espetáculo do inautêntico (Lukács). Ou seja, esse jagunço pode apontar em direção ao remoto, ao arcaico, e suas noções grandiosas, e igualmente para o horizonte à nossa volta, nosso comezinho viver cotidiano: “se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar — é todos contra os acasos.” * Alfredo Monte é doutor em teoria literária pela USP, professor, crítico e responsável pelo blog Monte de Leituras [http:/armonte.wordpress.com/] Alfredo Monte
Enviado por Germino da Terra em 06/03/2013
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