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Escritas torrenciais, por Braulio Tavares, em Metáfora ano 2 - no 13
Como a literatura de vanguarda (ou experimental) tem questionado o fazer literário ao incorporar novos horizontes estéticos à experiência coletiva de nossa época A maioria das pessoas (inclusive muitos artistas de vanguarda) visualiza a arte como uma seta apontando numa direção; a vanguarda é a ponta dessa flecha. Isto implica a ideia de que a arte inteira está indo naquela direção, só que uns estão mais adiantados do que outros, estão à frente, chegaram primeiro. A vanguarda de hoje é incompreendida porque está atravessando regiões conceituais que o restante da seta nem consegue imaginar. A vanguarda do século passado já foi assimilada: eles chegaram primeiro àquelas ideias, e o resto, nós todos, chegamos depois. Acho mais sensato e mais útil ver a arte como um círculo, não como um segmento de reta; e esse círculo se expande em diferentes direções. Não existe uma vanguarda, e sim muitas; existem artistas buscando coisas diferentes, em direções diferentes e com velocidades diferentes. O tal círculo é na verdade uma forma irregular, algo parecido com uma ameba, ou com o crescimento de uma cidade ao longo de um século, visto em câmera acelerada. Dali que muita gente prefere usar o termo “arte experimental” em vez de arte de vanguarda, porque experiências são feitas o tempo inteiro por artistas que estão insatisfeitos com o uso atual das formas e querem descobrir maneiras novas de fazer as coisas. A imensa maioria das experiências artísticas passa em branco; ninguém chega a tomar conhecimento delas. Algumas conseguem ser divulgadas, marcam presença, provocam polêmica, atraem a atenção do público e da crítica, e é nesse ponto que começam a ser chamadas de “vanguarda” — porque das mil experiências que estão acontecendo é a única que está sendo vista por todo mundo e que parece estar apontando uma direção nova. Centro e periferia No caso da literatura, esse círculo irregular tem um centro firmado e estabelecido há milênios, um centro onde convivem a arte de contar histórias e a arte de dizer as coisas. São artes diferentes mas que se harmonizam com facilidade, embora em geral os escritores sejam mais hábeis na primeira (são os autores que privilegiam o enredo) ou na segunda (os que privilegiam o estilo). Estes dois tipos, contudo, são o centro da cidade. Nas periferias, que é por onde as cidades se expandem, existem autores que tentam muitas vezes fazer literatura sem estilo ou sem enredo. Isto é possível? Kenneth Goldsmith é o criador do website UbuWeb (www.ubu.com) dedicado à arte de vanguarda em geral e à escrita conceitual. Goldsmith é conhecido por obras como Fidget, em que passou um dia inteiro descrevendo ao gravador cada movimento de seu corpo, e depois transcreveu tudo; e Soliloquy, em que gravou e transcreveu todas as palavras que pronunciou durante sete dias seguidos. É uma literatura onde o autor quase não escreve, e cujos métodos se assemelham à colagem dos pintores cubistas e à apropriação de objetos industriais feita por artistas plásticos como Marcel Duchamp ou Andy Warhol. Isso é literatura? Num artigo recente (http://bit.ly/npT8zj), Goldsmith dá exemplos dessa literatura radical contemporânea: “Nos últimos cinco anos, vimos alguém copiar On the road de Jack Kerouac por inteiro, uma página por dia, num blog; vimos a apropriação do texto de uma edição do The New York Times, publicada sob a forma de um livro de 900 páginas; uma reorganização da lista de lojas num shopping, diagramada em forma de poema; um escritor empobrecido que pegou todos os seus extratos de cartão de crédito e os encadernou num volume impresso por demanda, com 800 páginas, tão caro que ele próprio não conseguiu comprá-lo; um poeta que reorganizou o texto de uma gramática do século 19, inclusive o índice, de acordo com seus próprios métodos; um advogado que apresenta como poemas os memorandos do seu trabalho, sem mudar uma palavra sequer; outra escritora que passa os dias na Biblioteca Britânica copiando o primeiro verso do Inferno de Dante, em todas as traduções ali existentes, um depois do outro, até esgotar o acervo da biblioteca; outra equipe de escritores que se apropria de posts e status de redes sociais e os atribuiu a escritores falecidos (‘Jonathan Swift conseguiu entradas para o jogo dos Wranglers hoje à noite’), criando uma obra poética épica, interminável, que se reescreve cada vez que alguém atualiza seu Facebook; e um movimento literário chamado Flarf que consiste em recolher os piores resultados de busca do Google, quanto mais ridículos e ofensivos melhor”. A pergunta volta, com ainda mais força: isso é literatura? A melhor maneira de encarar essas atividades é vê-las numa periferia da literatura onde talvez exista menos gente, menos dinheiro e menos público do que no mundo literário convencional, mas há uma inquietação experimental desconhecida pelos autores cujos livros estão nas livrarias. Nessa periferia floresce de tudo, desde que seja uma experiência que (do ponto de vista de quem a pratica) nunca foi tentada, ou nunca foi tentada devidamente. Na literatura experimental, a experiência não se esgota no ato de escrever, mas também no de imprimir, publicar, divulgar, avaliar as reações, o impacto que o livro produz nas outras pessoas. Os experimentalistas são autores que vão para o sacrifício. Produzem obras que (eles sabem muito bem disso) não têm a menor chance junto ao mercado e ao grande público, mas mesmo assim eles insistem em produzi-las para que se tornem reais e se incorporem à experiência coletiva de sua época. Talvez outra época seja capaz de entendê-las e resgatá-las. Talvez sua própria época, mirando-se em suas tentativas, perceba com mais clareza os limites e as possibilidades da literatura que está produzindo. Braulio Tavares é escritor e compositor, autor do blog Mundo Fantasmo [http://mundofantasmo.blogspot.com] Braulio Tavares
Enviado por Germino da Terra em 12/12/2012
Alterado em 14/12/2012 Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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