O discurso intelectual é cretino, diz Edgar Morin em entrevista à Língua portuguesa, por Carmen Guerreiro e Luiz Pereira Junior
O olhar de garoto, a silhueta esguia e o gesto, largo e vibrante, por instantes disfarçam o cansaço denunciado pela voz enrugada. Aos 91 anos, Edgar Morin voltou ao Brasil em novembro para o uma série de diários, em que repassa quase quarenta anos de ativa vida intelectual. Emenda, no entanto, uma bateria de entrevistas, como a concedida à Língua, mal chega de uma jornada de onze horas de voo interoceânico. O corpo reclama. E Morin sugere, educadamente, brevidade. Mas não se contém, mal desata a primeira resposta. Gosta de falar, gosta do Brasil, gosta o desafio do esclarecimento improvisado este sociólogo intrigado com a comunicação humana, este filósofo impressionado com os métodos da razão, o militante da Resistência francesa que virou documentarista lendário. Suspeitas Em livros como os recém-lançados Diário da Califórnia, Um Ano Sísifo e Chorar, Amar, Rir, Compreender, todos pela coleção Diários de Edgar Morin, da Edições Sesc SP, Morin expõe com aguda franqueza o cotidiano de um pensador de renome, suas satisfações refinadas, sua observação dos clichês intelectuais e suas frustrações com as intrigas acadêmicas e os constrangimentos financeiros típicos da vida de professores, mesmo os da elite universitária. Mais do que isso, nesses livros vemos uma visão relaxada sobre, mas e crítica ferina aos discursos inabaláveis. Ter uma opinião pétrea, o discurso na ponta da língua, pode ser mera fumaça, avalia Edgar Morin. Quanto mais obscurecida por dogmas antigos e bem escondidos, menos a opinião racional evolui. A vida intelectual constrói uma linguagem que promete ver na razão o método capaz de resolver todo tipo de discordância: tudo pode ser explicado porque na realidade física tudo teria sua razão de ser. Esse tipo de linguagem é visto com suspeita por Morin. A vida intelectual não diminui o obscurantismo e muitos doutos pensadores mascaram preconceitos sob camadas de argumentação sistemática. Desde Sócrates, os filósofos equipararam “racionalidade” a uma única faculdade da razão: a reflexão. Viver bem equivaleria a viver de forma coerente, com razões para o que se faz. Morin tem consciência de que a racionalidade é ela mesma uma linguagem, e intui a imagem criada por David Rume: não é contrario à razão preferir a destruição do mundo a arranhar o meu dedo. Complexidades Morin sabe que o juízo desapaixonado é muitas vezes patológico, não racional: o isolamento vira alienação e não objetividade. E declara que um erro de raciocínio não está necessariamente no erro de fato (falsa percepção) ou no erro lógico (incoerência da argumentação), mas no modo de organização do saber num sistema de ideias. O raciocínio, afinal, não se limita à capacidade de criticar e argumentar, nem muito menos de entender as coisas. Inclui perspicácia e a capacidade de ver a complexidade como ordem, de encontrar significado na desordem e na confusão, exige simplificar sem matar a complexidade da vida. O Brasil e sua língua são desses tipos de ambientes complexos que, sem necessariamente representar um modelo para o mundo, têm qualidades (como a miscigenação) que tornam o país mais avançado que a maior parte das outras nações. Nos livros que chegam agora ao Brasil, há uma franqueza rara no relato de uma aventura intelectual. O senhor poderia falar sobre o processo de escrevê-los? Se olharmos para Diário da Califórnia, eu disse a mim mesmo antes de partir [Morin morou na Califórnia em 1969, a convite do Salk Institute] que tomaria nota somente de coisas muito interessantes que me acontecessem, e então eu decidi fazer um diário de anotações das minhas descobertas. Alguns anos depois, me pediram para fazer um diário durante um ano [ele se refere a Um Ano Sísifo]. Eu, como já tinha o Diário da Califórnia e outros diários, da mesma forma anotei pequenas coisas, pequenos detalhes e também grandes coisas. Nele há observações muito diversas, desde aquelas que podem parecer vulgares até outras que podem parecer filosóficas. O que pretendeu mostrar com esses depoimentos? Para mim, o objetivo foi mostrar em princípio que nós vivemos uma vida descontinuada. Passamos por pequenas coisas muito próximas de nós e que nos despertam sentimentos e emoções fortes, mas também por eventos muito importantes e longínquos, pelos quais não temos emoções que deveríamos ter, mas que temos com pequenas coisas da vida que acontecem na rua. Por exemplo, eu tomei nota sobre o rosto de uma jovem que se iluminou enquanto ela lia uma carta de seu amor. Isso quer dizer que existe uma diversidade naquilo que pode tocar uma pessoa hoje em dia. Qual é a extensão dessa dualidade entre o que é público e grandioso e aquilo que é pequeno e privado? Eu vivo a minha vida privada, habito em uma cidade, viajo, mas ao mesmo tempo também sou um cidadão do mundo e tudo o que acontece no planeta me interessa. Eu assisto a séries de televisão, telejornais, leio livros, tenho sonhos, portanto uma vida individual é um microcosmo com muitas atividades diferentes. E eu quis estabelecer a diferença entre aquilo que podemos chamar de um diário literário, no qual o escritor fala das belas coisas que viu e leu e de suas belas ideias, e também do diário de um homem em que há uma vida em diversos níveis e participa de eventos de diversas grandezas. O século 20 mostrou que a vida intelectual não inibe a intolerância. Como a intolerância se torna uma forma de dominação? E por que a linguagem racional tem se mostrado incapaz de evitá-la? Por toda parte houve o desprezo ou a condenação da homossexualidade e do aborto, e eu acho que isso tem mesmo origem cultural e religiosa. É de fato sob a influência da religião católica que o aborto e a homossexualidade são condenados, então precisamos pensar que a religião católica em um muitos países, como a França, por exemplo, regrediu para ser um assunto privado, porque houve um grande progresso da laicidade. Não apenas a laicidade pública, mas da mente. Na França, por exemplo, tivemos de esperar até o ano de 1973 para que o aborto fosse legalizado. É um problema no qual a evolução da opinião é muito importante. Quanto mais a opinião permanecer obscurecida por dogmas antigos, menos ela poderá evoluir. O senhor se preocupa com a cretinização promovida pela mídia, mas lembra que há também uma disseminada pelos intelectuais. Poderia explicar? Eu disse que o mundo intelectual universitário critica o cretinismo que vem de baixo, ou seja, o cretinismo que vem da mídia, mas ele não critica o cretinismo do alto. Porque, na minha opinião, as ideias dogmáticas, as ideias já prontas, os preconceitos estão presentes nesse mundo superior de inteligência. Não se trata de criticar um filme ruim, a televisão etc. como algo inferior — existe também esse lado inferior no mundo intelectual. Há uma forma de identificar essa mediocridade intelectual? A linguagem intelectual literária é dos escritores, a filosófica é dos filósofos etc., mas o que me impressiona é que existe muito pouca autocrítica nesse meio intelectual e isso produz ideias em geral completamente bizarras. Por exemplo, na França, há mais ou menos uns quinze anos, reinava no mundo intelectual a dogmática estruturalista. Isso quer dizer que a história é secundária, o sujeito não existe, o autor não é autor de sua obra, são forças anônimas, são estruturas. Há a ideia de dissolver o ser humano, a vida, os problemas da subjetividade e a evolução da História — dissolvê-la em benefício da estrutura. Essa ideia que reinou no mundo intelectual, na minha opinião, é completamente equivocada. O senhor teria algum outro exemplo concreto? Veja, por exemplo, um pensador que eu estimo muito, que é genial como escritor: (o antropólogo) Lévi-Strauss (1908-2009). Ele escreveu que o objetivo das ciências humanas não é o de revelar o homem, mas de dissolvê-lo. Já eu penso que o objetivo das ciências humanas é exatamente o contrário! Não é dissolver o homem, mas revelá-lo, contextualizá-lo. Então podemos dizer que há muitos dogmas que reinaram no mundo intelectual, que seja na época da dominação do pensamento de Jean-Paul Sartre, uma época estruturalista, uma época em que havia um marxismo escolástico, e hoje ainda eu acho que existe muita arrogância, muito simplismo em muitos textos intelectuais. A partir disso, como o senhor se insere nesse mundo intelectual? Eu não ajo como um intelectual que despreza, somente, as mídias. Nem tampouco os intelectuais. Eu ajo como alguém que não despreza ninguém, mas despreza certas ideias, e por isso me coloco a certa distância desse mundo da intelectualidade. Para resumir, eu escrevi, já não sei mais em que texto, duas coisas sobre esse assunto. A primeira é a que observa o exemplo dos gafanhotos. Quando os gafanhotos estão sozinhos, são indivíduos isolados, são animais muito gentis, têm uma bonita cor verde, são vegetarianos, muito amáveis. Mas quando estão em massa, como um raio devastam tudo, mudam de cor, tornam-se assassinos. Portanto, eu digo que os intelectuais sozinhos são simpáticos, interessantes, mas quando se juntam em uma casta se tornam terríveis. De resto, isso também é explicável porque em rodas as profissões em que a subjetividade, o sentimento do ser é ligado a uma pesquisa de reputação, de glória, ou mesmo de imortalidade, por todos os cantos existe esse grande problema e vemos isso muito evidentemente nos políticos e nos advogados, mas também muito entre escritores, filósofos, etc. Neste momento vemos egos superdimensionados, existe um egocentrismo tremendo, a inveja, o ódio, e isso faz com que a sociedade dos intelectuais, para mim, seja insuportável — e falo da França, não do Brasil, porque lá está tudo concentrado em uma só cidade, que é Paris. E a segunda observação? A segunda coisa que eu escrevi faz alusão a um romance de Vitor Hugo, Quatrevingt-treize [no Brasil, publicado como O Noventa e Três]. Em determinado momento, estão avançando as tropas contra a revolta pela República, e um soldado de artilharia deixa, por falta de jeito, durante uma tempestade, escapar o seu canhão. Com milita coragem, o artilheiro consegue recuperar e domar o canhão desgovernado. Então o chefe da tropa, o marquês de Lantenac, faz com que todo mundo suba em uma ponte e diz que irá condecorar o marinheiro com a maior condecoração que existe pelo ato de coragem, e em seguida o condena a ser enforcado por ter sido negligente com a arma que estava sob sua responsabilidade. Como isso se aplica aos intelectuais? Eu digo que para os intelectuais é a mesma coisa. De um lado, eu os elogio porque eles continuam a levantar questões e problemas globais, fundamentais, que ninguém mais levanta, porque são experts, são especialistas. Mas, de outro lado, eles têm leveza demais, não têm rigor suficiente. Então faço um elogio e ao mesmo tempo os condeno. É verdade que considera o Brasil um modelo para o mundo? Modelo é uma palavra forte demais, mas eu penso que, do ponto de vista da miscigenação e de qualidades, o Brasil é um país que é mais avançado que a maior parte dos países. É um país com uma grande vitalidade cultural, um país que tem soberania, apesar de suas profundas diversidades entre norte, sul, nordeste, centro-oeste, sudeste. É um país onde é possível observar iniciativas muito criativas, como vi em uma favela no Rio, onde tenho um amigo que fez um grupo para reconhecer as crianças e impedir que se tornem delinqüentes. Penso também no Conjunto Palmares, em Fortaleza [bairro carente no sul da capital cearense, cujos moradores se organizaram para criar o Banco Palmas, uma iniciativa de economia solidária que se tornou referência]. É um país com muitas iniciativas, muita vitalidade, mesmo se pensarmos na política. O que mais o impressiona na língua portuguesa do Brasil? É uma língua que eu domino muito pouco; talo espanhol e italiano. Mas é verdade que falo um pouco de português quando bebo caipirinha! [risos] É uma língua que tem sua musicalidade própria, e eu amo isso, mas também gosto muito da musicalidade das outras línguas latinas. O senhor acredita que um idioma condiciona a qualidade do pensamento de seus falantes? Não é a língua que faz isso, é o uso feito da língua. Uma língua como o português, o espanhol, o francês é algo de que algumas pessoas, e não apenas escritores, são capazes de se apropriar de todas as combinações possíveis, produzir metáforas, imagens. É bastante curioso. Existem dois polos criativos da língua: o polo dos escritores e o polo popular, onde estão as gírias. E são esses dois polos que fazem viver uma língua. Edgar Morin, Carmen Guerreiro e Luiz Pereira Junior
Enviado por Germino da Terra em 05/12/2012
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