3 de setembro de 2010
Sobre o sentido e a falta de sentido de se fazer um diário, de Zygmunt Bauman em seu Isto não é um diário, por Jorge Zahar Editor Ltda. Confesso: ao começar a escrever (são 5h), não tenho a menor ideia do que está por vir, se é que virá alguma coisa, quanto vai durar e por quanto tempo vou precisar dela, sentir o impulso de realizá-la e desejar mantê-la em andamento. E a intenção ainda não está clara, que dirá o propósito. A questão do “para quê” é difícil de responder. No momento em que me sentei à mesa do computador, não havia um novo assunto candente à espera para ser mastigado e digerido, nenhum livro novo a ser rescrito, nenhum material antigo a ser revisado, reciclado ou atualizado, nada de novo para saciar a curiosidade do entrevistador, nenhuma palestra a ser esboçada por escrito antes de ser proferida — nenhuma solicitação, incumbência ou prazo final... Em suma, não havia nem uma estrutura montada, à espera der preenchida, nem um prato cheio de material bruto à espera de molde e de fôrma. Creio que a questão “por quê” é mais adequada nesse caso que a pergunta “para quê”. Os motivos para escrever são abundantes, uma multidão de voluntários alinhados até serem notados, destacados e escolhidos. A decisão de escrever é, por assim dizer, “sobredeterminada”. Para começar, não consegui aprender outra forma de ganhar a vida a não ser escrevendo. Um dia sem escrita parece um dia perdido ou criminosamente abortado, um dever omitido, uma vocação traída. Prosseguindo, o jogo das palavras é para mim o mais celestial dos prazeres. Gosto muito desse jogo — e o prazer atinge os píncaros quando, reembaralhadas as cartas, meu jogo parece fraco e preciso forçar o cérebro e lutar muito para preencher as lacunas e superar as armadilhas. Esqueça o destino: estar em movimento, e pular sobre os obstáculos ou afastá-los com um chute, é isso que dá sabor à vida. Outro motivo: sinto-me incapaz de pensar sem escrever. Imagino que eu seja primeiro um leitor e depois um escritor — pedaços, retalhos, fatias e frações de pensamentos em luta para nascer, suas aparições fantasmagóricas/espectrais rodopiam, comprimindo-se, condensando-se e novamente se dissipando; devem ser captados primeiro pelos olhos, antes que se possa detê-los, colocá-los no lugar e lhes dar contorno. Primeiro precisam ser escritos em série para que um pensamento razoavelmente bem-acabado possa nascer; ou, se isso talhar, ser abortado ou enterrado como natimorto. Além do mais, embora eu adore o isolamento, tenho horror à solidão. Depois que Janina se foi, cheguei ao fundo mais sombrio da solidão (se é que a solidão tem um fundo), ali onde se juntam seus sedimentos mais amargos e pungentes, seus miasmas mais tóxicos. Como o rosto de Janina é a primeira imagem que vejo ao abrir meu desktop, o que se segue depois que conecto o Microsoft Word nada mais é que um diálogo. E o diálogo faz da solidão uma impossibilidade. Por um, embora não menos importante, suspeito que eu seja um grafômano, por natureza ou criação... Um viciado que precisa de mais uma de suas doses diárias ou que se arrisca até as agonias da abstinência. Ich kann nicht Anders (Não posso fazer diferente). Esse provavelmente é o motivo profundo, aquele que torna a busca por motivos tão desesperada e inconclusiva quanto inescapável. Quanto às outras causas e motivos, realmente não é possível contá-los, e, pelo que sei, seu número continuará a crescer a cada dia. Entre os que mais se destacam no momento está o sentimento progressivo de que estou abusando da hospitalidade, de que já fiz imoderadamente o que minhas capacidades moderadas me permitiam ou me obrigavam, e que portanto chegou a hora de aplicar a mim mesmo a recomendação de Wittgenstein, de manter silêncio sobre as coisas que não devo falar ou comentar (coisas, acrescentaria eu, que não devo mencionar ou debater com responsabilidade, ou seja, com a convicção legítima de ter algo de útil a oferecer). E as coisas de que não devo falar são, cada vez mais, aquelas que valem a pena comentar hoje. Minha curiosidade se recusa a aposentar-se, contudo, minha capacidade de satisfazê-la ou pelo menos de aplacá-la e aliviá-la não pode ser levada ou persuadida a prosseguir. As coisas fluem rápido demais para dar lugar à esperança de captá-las em pleno voo. É por isso que a análise de um novo tema, um novo assunto para estudo prolongado, à espera de que se faça justiça a seu objeto, já não está entre minhas cartas. Não porque falte conhecimento disponível para consumo — mas em razão de seu excesso, que desafia todas as tentativas de absorvê-lo e digeri-lo. Talvez essa inviabilidade da absorção seja resultado do envelhecimento e da perda de vigor — uma questão total ou principalmente física e biológica, cujas raízes podem ser encontradas, em última instância, na mutabilidade de meu próprio corpo e de minha mente (uma conjectura plausível, tornada ainda mais digna de crédito pela impressão de que os recursos necessários para obter e processar novas informações, fornecidos em minha juventude sob a forma de um número limitado de cédulas monetárias de grande valor, são agora oferecidos em enormes pilhas de moedas de cobre, grandes em volume e peso, mas abominavelmente reduzidas em matéria de poder de compra — o que as torna, tomando de empréstimo uma expressão de Günther Anders, “supraliminares” para um corpo envelhecido e uma mente que se cansa com facilidade). Nossa época esmera-se em pulverizar tudo, mas nada de modo tão profundo quanto a imagem do mundo: essa imagem se tornou tão pontilhista quanto a do tempo que preside sua fragilização e fragmentação. Concluo que, finalmente, o mundo fragmentado se emparelhou com os pintores de sua aparência. Uma antiga fábula indiana me vem à cabeça; meia dúzia de pessoas, topando com um elefante no caminho, tenta avaliar a natureza do estranho objeto que encontraram. Cinco delas são cegas, nenhuma é alta o suficiente para tocar e sentir o elefante como um todo, de modo a juntar as impressões fracionadas formando uma visão da totalidade; a única que tem olhos para ver, no entanto, é muda... Ou me lembro da advertência de Einstein, de que, embora, em princípio, uma teoria possa ser provada por experimentos, não há um caminho que leve dos experimentos ao nascimento de uma teoria. Einstein devia saber muito sobre o assunto. O que ele não imaginava nem podia imaginar era o advento de um mundo, e de uma forma de viver nele, composto apenas de experimentos, sem teoria para planejá-los nem instruções confiáveis sobre como iniciá-los, dar-lhes sequência e avaliar seus resultados. Qual é, afinal, a diferença entre viver e contar a vida? Não faria mal aproveitar uma dica de José Saramago, fonte de inspiração que descobri há pouco tempo. Em seu próprio quase-diário, reflete ele: “Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel.”* Exatamente. *Todos os textos de Saramago aqui citados estão em O caderno de Saramago, seu blog na página da Fundação José Saramago, disponível em: josesaramago.org. No Brasil, parte deles encontra-se publicada em O caderno (Companhia das Letras, 2009). Nota do tradutor Carlos Alberto Medeiros. Zygmunt Bauman
Enviado por Germino da Terra em 30/11/2012
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