Quando sei que devo começar a escrever, por Miguel Sanches Neto, na Metáfora — literatura, educação & cultura, no 13
As melhores condições de produção de um livro acontecem quando se manifestam o ideal de escrevê-lo e as condições para isso Uma das perguntas mais recorrentes entre escritores é: você está escrevendo algum livro novo? Mesmo em caso negativo, respondo sempre que estou, e isso não é uma mentira. Nas dobras insondáveis de nosso inconsciente, está ocorrendo a fusão de percepções a partir de uma coleta contínua de dados, e essas anotações interiores serão ou não usadas em um romance ou em um conjunto de contos. Escrevemos muito antes de escrever, quando elaboramos em nossa imaginação os elementos possíveis de um texto, quando nos deixamos ferir pelo mundo, colecionando cicatrizes que, ordenadas e traduzidas para a esfera da linguagem, serão a obra que esperam ou que esperamos de nós. Muitos escritores, no entanto, passam a vida produzindo imaginariamente livros que jamais existirão, o que nos revela uma categoria muito comum, a dos escritores sem obra. Estes não são seres caricaturescos, mas trágicos. Eles não souberam criar um espaço de escrita ou lhes faltaram energia e entusiasmo para tanto. Em boa medida, todo escritor concretiza apenas uma parcela mínima dos livros que foram inscritos em sua sensibilidade. Não existem, então, obras completas. Todas são cheias de falhas. Meridiano Difícil é saber se chegou a hora de escrever um livro, seja ele o primeiro ou apenas mais um na carreira de um autor já consolidado. Há casos de grandes livros de estreia escritos precocemente, quando o autor era quase um adolescente — o mais famoso é Uma estação no inferno, publicado em 1873, quando Arthur Rimbaud tinha apenas 19 anos. Este tipo de obra contraria todas as recomendações de que é necessário ter vivido muito para tentar algo perene. Isso acontece porque interiormente um autor pode ter acumulado muita experiência e muita linguagem para expressá-la, mesmo não tendo passado ainda por episódios biográficos excepcionais. Tais casos são raros, tanto quanto as grandes obras iniciais nascidas no final da vida, e ai cito Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, que foi produzido tardiamente e publicado em 1958, apenas um ano após a sua morte. Neste grupo, a raridade vem do fato de que narrativas densas necessitam de uma energia vital, que tende a ser biologicamente menor nas fases finais de nossas vidas. O momento mais propício para o surgimento de um grande romance é quando ainda temos a força da juventude e a experiência sedimentada da madureza, que nos dá uma visão do conjunto da condição humana, desde as descobertas da infância e da juventude até as decepções e o convívio com a decadência física da idade mais avançada. Nessa fase somos seres mais completos, e ainda fortes o bastante para enfrentar a produção de um romance. Assim, uma grande narrativa (mas também os volumes essenciais de poemas e de contos) acontece mais comumente entre os 35 e os 55 anos, em que há uma confluência de condições biológicas, psicológicas e culturais. O escritor geralmente nasce ao cruzar o meridiano existencial — “a meio do caminho desta vida”. A consciência disso, pelo menos para mim, faz desse período o mais dramático na vida do escritor, principalmente daquele que não pode se dedicar apenas à escrita, como acontece em países periféricos como o Brasil. Descartamos, em nosso calendário íntimo, os dias que poderiam ser dedicados à obra que sonhamos escrever. Obrigações profissionais outras, dentro ou fora da área da literatura, nos convocam constantemente e não sobram tempo e paz para a escrita. Excedentes Um grande livro vem de um excedente de experiências (as tais anotações interiores) e de linguagem. Tanto uma como a outra não cabem em nossa biografia, justificando que as transformemos em um objeto narrativo. Não se escreve assim com os produtos destinados à subsistência, mas com o que está sobrando. Por mais próximo que seja da vida, a escrita é sempre um transbordamento dela. O difícil é criar brechas de tempo para dar conta dessa tarefa. Não basta apenas saber quando começar um livro, mas saber como levá-lo adiante com a mesma intensidade. Esta é uma matemática que cada um vai resolver de acordo com a sua natureza. No entanto, a rotina do escritor que burocraticamente se senta todos os dias durante tantas horas para escrever, tenha ou não tenha o que dizer, é para mim uma fonte de angústias e equívocos. A literatura nascida dessa assiduidade mais própria de funcionário do que de artista leva a uma obrigação de produzir. Essa obrigação pode desenvolver a famosa crise diante da folha em branco, impedindo que se avance. Tal sofrimento, no entanto, é pequeno diante do resultado desse tipo de esforço. O resultado desse trabalho — e escolho propositalmente esta palavra — é uma literatura que se arrasta, que não se impõe como ritmo, sendo antes milimetricamente conquistada contra o vazio. Escrita explosiva As melhores condições de produção de um livro acontecem quando se manifestam o momento ideal de escrevê-lo e as condições para isso. Sei por experiência própria que há livros contratados, com prazo de entrega, mas mesmo nesses casos, não muito comuns, é preciso saber a hora em que devemos começar a escrita. Nunca antes de uma longa preparação interior, de ter sonhado pacientemente este livro. Acredito que um livro primeiro precisa ser sonhado — um sonho acordado, explique-se — para só depois ser escrito. Mas por quanto tempo sonharemos este livro? Quando sei exatamente a hora de escrevê-lo? Sigo à risca — e já o seguia antes de conhecê-lo — o método de Cioran, em “Confissão resumida”: “Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes. Em geral, começa assim: um ligeiro tremor que se torna cada vez mais forte, como depois de um insulto que você recebeu sem responder. Expressão equivale à réplica tardia ou à agressão adiada” (Exercícios de admiração. Rocco, 2001, p. 123). Para ele, a escrita é uma forma de renunciar à contenção própria dos sábios e se entregar ridiculamente às neuroses, é um ato antinatural do ponto de vista social: “Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos” (idem, p, 124). Com esta propensão, Cioran afirma que com a idade se escreve cada vez menos, pois é preciso muita energia para tal catarse literária, que faz de todo escritor o centro do mundo, uma espécie de olho de furacão, que absorve tudo por onde passa. Perseguir esse momento ou identificá-lo quando ele se manifesta exige uma atenção constante por parte do escritor. Nem todos os sentimentos explosivos servem, e eles só funcionam quando o livro já está formado em nosso interior. Se estas condições são dadas, é preciso ainda arranjar um tempo para a escrita. Download Eu vinha pensando havia mais de dois anos nas possibilidades narrativas de A primeira mulher (Record, 2008), e esperava o final do ano (nas férias da universidade em que trabalho, posso me dedicar mais longamente a um romance), quando, numa noite, chegando cansado, e não havendo ninguém em casa, sentei-me à mesa da cozinha, sem coragem de ir ao escritório, e peguei um caderno para anotações que sempre me acompanha, e escrevi, num transe, o que seria a abertura do romance. A partir daquele momento, não havia mais como parar a escrita. Passei a gastar todas as manhãs disponíveis — sou um ser matinal — ao livro que exigia ser escrito por mim pois é o livro, neste momento, que comanda o escritor. Avancei os últimos meses do ano nesse processo, seguindo nele durante as férias de verão. No final delas, o copião estava pronto. Eu precisava apenas deixar descansar e depois me dedicar aos infindáveis ajustes. Nessa primeira fase, fiz um download, de forma obscura e tumultuada, da história que eu já vinha sonhando. Só depois começa a verdadeira escrita do livro, momento em que cada uma de suas palavras tem que ser testada, com o escritor comandando racionalmente a produção. Mas ai você já tem muito material para moldar. Miguel Sanches Neto, doutor pela Unicamp e professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, é romancista, poeta, contista e cronista, além de colunista da Gazeta do Povo. Autor do romance Chove sobre minha infância (Record, 2ª edição, 2002), entre outros, recebeu o Prêmio Cruz e Souza (2002) e Brasil-Argentina (2005). Miguel Sanches Neto
Enviado por Germino da Terra em 31/10/2012
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |