as paisagens interiores da literatura, entrevista de Manuel da Costa Pinto à Luiz Costa Pereira Junior, na revista Metáfora no 12
Crítico reúne ensaios em obra que faz do prazer da leitura o ponto de partida para a crítica literária Manuel da Costa Pinto é um crítico literário do novo século. Antenado, consistente, aplicado, curioso e versátil. Um multitarefas em multimeios. Curador da Festa Literária Internacional de Paraty no ano passado, é apresentador do programa Metrópolis (TV Cultura-SP) e editor destacado. Aos 46 anos, o jornalista também apresenta programa de literatura e música clássica na rádio Cultura FM. Mestre em teoria literária pela USP, atuou no início dos anos 90 como assessor editorial de João Alexandre Barbosa, na Editora da USP. Integrou então o suplemento Mais, do jornal Folha de S. Paulo (1994-95) antes de criar a revista Cult, na qual assumiu a função de editor entre 1997 e 2003, quando voltou para a Folha, como colunista e, desde 2008, também como editor do Guia da Folha, encarte mensal com os lançamentos culturais do período. Resenhista amante das obras de Albert Camus e Fiódor Dostoiévski, Manuel acaba de reunir parte de sua produção crítica no volumoso Paisagens interiores e outros ensaios, que marca o lançamento do novo braço editorial da Book Partners, a B4 Editores, fruto da aquisição da Empório do Livro e da Cia. dos Livros. “Se tudo que já escrevi fosse reunido daria um livro grande, mas de pouco interesse”, diz ele, modestamente. A reunião de escritos fez o autor se deter nos desafios do procedimento crítico, seus rumos e desafios, tema da entrevista que segue. O que espera com Paisagens interiores? Como o livro surgiu de um convite da editora, não é propriamente parte de um projeto anterior. Mas reuni textos com “pretensão de permanência”, aqueles que, nascidos da necessidade de fazer jornalismo cultural, contivessem aprofundamento e desenvolvessem temas que me são caros, como o romance filosófico, e personagens que me fascinam, como Camus e Dostoiévski. Recuperei os arquivos originais, restaurei seus títulos originais e inseri referências bibliográficas, que não tinham cabimento em jornais e revistas. Como pensa os caminhos da critica literária atual? Primeiro de tudo, temos de lembrar que o lugar da literatura na história muda muito. Ela pode hoje ser vista como uma forma de entretenimento, mas nem sempre foi assim. A literatura muitas vezes é acolhedora, é uma forma de harmonizar você com o mundo. Mas não se pode esquecer que ela tem a ambição de abalar as estruturas de representação, de ideias e sensibilidades do leitor. Muito do que se faz em literatura é uma aversão ao mundo, não uma harmonização, e aí, diante de um Franz Kafka, de um Samuel Beckett, não se pode mais falar de entretenimento. Hoje, nas revistas, nos eventos, no mundo editorial, há um ambiente que percebe a literatura de forma festiva — não por acaso, eventos importantes do ramo são chamados de “festas”. Isso mostra uma literatura “amansada”, que incorporou como natural um papel no meio cultural e no mercado, impensável até os anos 70. Naquela época, seria um insulto usar as palavras “entretenimento” e “mercado” para falar da literatura. A crítica literária teve seu período áureo no século 20 num momento em que a literatura colocava questões difíceis de entender. Das vanguardas estéticas dos anos 20 à contracultura dos 70, as artes e as ideias prometiam transformar o mundo. Havia em muitos autores uma confiança nas mudanças e um caráter perturbador a ser explicado. A crítica correspondia a esse momento. Hoje, ninguém olha um autor como alguém que representa um desafio transformador e perturbador. A literatura hoje, mesmo quando incomoda, é assimilada, tomada por excêntrica, não como algo perturbador. Mesmo quando não se propõe a ser entretenimento, a obra tende a ser lida como objeto de consumo. O papel da crítica muda nesse contexto? Ela deixa de ter presença forte no cenário literário, em parte pela queda de interesse da academia pelos movimentos novos da literatura, em parte porque o leitorado quer que a crítica substitua a discussão da complexidade literária pela capacidade de fornecer referências. O leitor busca a opinião de autoridade a ser aceita sem discussão. Cresceu o número de leitores que quer quem indique, direcione seu olhar, pois considera a leitura um objeto de consumo, entretenimento e educação. Embora a literatura não tenha finalidade, as pessoas dão a ela essa finalidade de garantir felicidade, de entreter e educar. Por isso a crítica se tornou menos importante do que a atitude didática. É mesmo difícil definir a literatura atual ou faltam critérios para analisá-la? A gente vive um momento em que, no Brasil e no mundo, a obra de cada autor é singularizada e não vemos questões centrais a dominar os escritos. A literatura brasileira deixou de ter temas recorrentes, como violência urbana e liberdade de expressão, que foram importantes em outras épocas. Ocorre que, mesmo quando havia esses temas, não havia homogeneidade literária. Um nome como Dalton Trevisan, que tem uma maneira de olhar o mundo pelos fragmentos da perversão, nos anos 60 e 70 representava por escrito o desenvolvimento fracassado do país. Sua literatura era uma forma de perceber as perversões latentes da sociedade conservadora, como uma experiência monstruosa. Sua prosa tinha em comum com João Antônio e Rubem Fonseca a violência, o clima asfixiante do autoritarismo da ditadura. Mas ele criou uma linguagem própria, que passou a ditar seus caminhos, com um pé na realidade, outro na lâmina com que corta a realidade. Hoje, sua literatura representa a ironia num Brasil cenográfico, a Curitiba que é “uma favela de lo mundo”, como ele mesmo diz. Dalton prova que tentativas de identificar homogeneidade são sempre parciais. Se há um momento histórico em comum, há sempre singularidades. Quais as singularidades homogêneas de hoje? Há núcleos de inteligibilidade, mas não homogeneidade. Autores dos últimos dez, vinte anos, não têm o peso da realidade opressiva e esmagadora do regime militar, não têm o pano de fundo autoritário, e seus textos têm, por isso, menos marcas históricas. A prosa brasileira se estilhaça, então, em experiências singulares, embora tenha linhas. Há, por exemplo, a representação da periferia, como em Paulo Lins, Ferréz, Fernando Bonassi. Como há também certa tendência que se casa com a indústria cultural, de buscar experiências bizarras, que escapem à realidade. A ideia moderna de que a literatura é um desvio de linguagem e um choque de experiências, essa ideia se manifesta hoje numa confusão de gêneros e na percepção de tudo como algo meio bizarro, como lemos em Santiago Nazarian, Ronaldo Bressane e Verônica Stigger. Há campos com incidência maior, como a narrativa curta, quase telegráfica, que expressa uma realidade volátil e vivências em ritmo de tensão. Para Flora Sussekind, esses escritores exprimem a volatização que tem a ver com a ideia de economia como algo impalpável, o que gera narrativas sumárias, epigramáticas, ao modo de Marcelino Freire e Verônica. Em meio à tendência das narrativas curtas, como explicar a atual fase dos romances? Romance tem uma plasticidade difícil de definir. É um gênero complicado, mais uma disposição narrativa em relação ao mundo, uma reprodução que é desviante da realidade. Parte da tradição brasileira foi marcada por narradores e personagens insularizados em si mesmos. Era o personagem alienado do todo, que vive sua paisagem interior, como nos apresentam Dionélio Machado e Sérgio Sant’anna. De outro lado, havia a narrativa com moldes épicos, com ênfase no arcaico da linguagem e no mítico da narrativa, como Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro. Por muito tempo no país, o naturalismo rimou com o épico, e o não naturalismo rimou com hermetismo. Com isso, tivemos a ausência da ideia de romance como uma reflexão sobre a realidade palpável. Hoje há escritores que estão resgatando o gênero como forma de pensar o mundo contemporâneo. Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Bernardo Ajzenberg e Cristovão Tezza recuperam um sentido de reflexão sobre o mundo à sua volta tal como encontramos em Balzac, Dostoiévski e Tolstói, por exemplo. Que mudança técnica na escrita de romances pode ser considerada significativa dos tempos atuais? Há nos livros de Bernardo Carvalho e nos de Tezza, como O Fotógrafo e O Filho Eterno, a escrita com reflexão em tempo presente. É algo também presente em J. M. Coetzee e sua obra-prima Desonra. É a narrativa que decompõe uma anatomia “com o corpo ainda vivo”, que tenta compreender o fato no instante em que ocorre. A experiência humana ficou tão rarefeita na vida contemporânea que a tentativa de narrar cada ato é também a de analisá-lo e colher suas consequências, tudo ao mesmo tempo. Há uma voz narrativa aflita, afoita, perseguida pela ideia de que cada gesto é significativo e deriva em acontecimentos posteriores. Esse recurso técnico é representativo da percepção contemporânea da realidade. Quais os autores indispensáveis no Brasil atual? Há os incontornáveis, como Tezza, Hatoum, Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato e o Bonassi de Subúrbio, que expressam o fim dos anos 90, início do novo milênio. E há os que precisam ser lidos, e com atenção, como Ajzenberg e o Teixeira Coelho do inclassificável e genial História natural da ditadura, que trazem elementos mais perturbadores ou formais para o gênero em que foi escrito. Mídia e escritores: é possível ser lido sem marketing pessoal? Não propriamente marketing pessoal, mas as apostas das editoras continuam importantes. O selo das editoras é muito mais relevante do que qualquer trânsito de influências. Apesar de cada vez ser mais fácil publicar na internet ou criar seu próprio selo editorial, ainda se encontra nas editoras uma esfera de competência e um pacto de confiança, que prevalecem na hora de definir o que se vai ler e criticar. Não é questão de priorizar grandes editoras. Editoras de médio porte, como Editora 34, Iluminuras e Ateliê Editorial, criaram seu próprio pacto de confiabilidade com o leitor, que legam ao autor novo que publicam. Sei que, se um escritor foi publicado por editoras assim, haverá algo nele a ser visto, porque passou por uma seleção rigorosa. Esse processo não foi afetado pelas alternativas de publicação fora do circuito das editoras. O que o escritor estreante tem de superar? Querer ser escritor antes de escrever. Ser escritor virou um símbolo de status. O circuito literário faz todo mundo querer ser escritor sem obra. Muita gente anda escrevendo mais para se tornar autor do que por necessidade de escrita. Criou-se uma cena literária glamourosa o bastante para atrair gente que se esquece de escrever em silêncio, sem necessidade de publicar. O estreante tem de adquirir voz própria. E não se faz isso publicando os primeiros rascunhos. O principal, no entanto, é ter um problema, o que afasta o autor de alguns leitores. Posso não compartilhar um dado gênero de preocupação com um autor, mas ele o expõe tão bem, de forma tão notável, que mesmo sem adesão à temática eu admiro a obra, entendo a realização prodigiosa, a tradução prodigiosa de uma questão. Mas muita gente está mais preocupada em abordar a questão do momento, mesmo que não seja a dele. Seus escritos tendem então a mostrar que ele não tem timbre imaginativo e estilístico para tanto. Ninguém salta sobre a própria sombra. O que falta ao mundo editorial brasileiro? O meio editorial do país é bem sintonizado com a produção de grandes centros como EUA, Inglaterra, França e América Latina. Mas falta diversidade linguística. O que chega até nós da Itália, por exemplo, é muito tímido. Há também um fosso entre a literatura brasileira e a portuguesa, um descompasso injustificável na mesma língua. E faltam, principalmente, publicações de fundo, do acervo fundamental dos escritores, de obras completas e críticas. Ficamos sem o conjunto da obra, por exemplo, de um Céline. E não temos edições críticas das obras completas nem de Machado de Assis. Gomo a teoria literária ajuda o leitor? Ela é fundamental e um prazer. Tem quem goste tanto de futebol que só ver as partidas não basta, a pessoa tem de ver também uma mesa-redonda sobre o assunto. A crítica literária é como a mesa-redonda da TV. Não existe porque se quer um blá-blá-blá interminável, mas porque se espera perceber camadas novas de significação que não se havia notado inicialmente e para entender a razão de ter gostado daquilo. Se gostamos de invenções formais, linguísticas, tendemos a preferir teorias mais formalistas. Gosto mais da teoria mimética, que se preocupa com a relação entre mimese (imitação da realidade) e desvio (de linguagem, de temas), aquela que tenta entender a representação na literatura, como fazem Otto Maria Carpeaux e Arnold Hauser. Mas há teorias mais pontuais, como a de Jean Starobinski. Considera, então, que a teoria é parte da vivência de todo leitor? Acredito que há duas vivências literárias na trajetória de um leitor apaixonado. Uma é a da adesão do leitor ingênuo. Alguns ambientes ficcionais, por exemplo, se tornam tão presentes que sentimos vontade de viver neles. Sou assim com Crime e Castigo, de Dostoiévski: eu gostaria de estar na água furtada em que Raskolnikov vive antes de matar a velhinha. Mas há uma segunda vivência, que é a do leitor que precisa prolongar a experiência do livro e isso ele encontra no olhar crítico. Como uma pessoa completamente fria e alheia ao mundo, como o protagonista de O Estrangeiro, de Albert Camus, narra a própria história em 1ª pessoa? Não é uma contradição? A pergunta faz o encantamento do livro se prolongar para além de sua leitura. Manuel da Costa Pinto e Luiz Costa Pereira Junior
Enviado por Germino da Terra em 05/10/2012
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