Nós, de Martha Medeiros — Revista O Globo, 30 de setembro de 2012
Poucas pessoas gostam de viajar sozinhas. O que é compreensível: a melhor modalidade é a dois, também acho. Mas na ausência momentânea de parceria, por que desconsiderar uma lua de mel consigo mesmo? Uma amiga psicanalista me disse que não é por medo que as pessoas não viajam sozinhas, e sim por vergonha. Faz sentido: numa sociedade que condena a solidão como se fosse uma doença, é natural que as pessoas se sintam desconfortáveis ao circularem desacompanhadas, dando a impressão de serem portadoras de algum vírus contagioso. Pena. Tão preocupadas com sua autoimagem, perdem de se conhecer mais profundamente e de se divertir com elas próprias. Vivi recentemente essa experiência. Tirei dez dias de férias (você não reparou porque segui enviando as crônicas para o jornal, um privilégio da minha profissão). Estive em lunares que já conhecia para não me sentir obrigada a conferir as atrações turísticas — o “aproveitar” não precisa necessariamente ser dinâmico, podemos aproveitar o sossego também. Minha intenção era apenas flanar, ler, rever amigos que moram longe e observar a vida acontecendo ao redor, sem pressa, sem mapas, sem guias. Dormir até mais tarde e almoçar na hora em que batesse a fome, se batesse. Estar disponível para conversar com estranhos, perceber o entorno de forma mais aguçada, circular de bicicleta por cidades estrangeiras. Ave, bicicleta! Diante do incremento de turistas no mundo, não raro impossibilitando a contemplação de certos pontos, alugar uma bike às 7h30m da manhã foi a solução para curtir ruas vazias e silenciosas, e assim atingir um contato mais sublime com cidades que se tornam eletrizantes assim que o comércio abre. Solitários, somos todos, faz parte da nossa essência. Não é um defeito de fabricação ou prova de nossa inadequação ao mundo, ao contrário: muitas vezes, a solidão confirma nossa dignidade quando não se está a fim de negociar nossos desejos em troca de companhia temporária. E a propósito: quem disse que, sozinho, não se está igualmente comprometido? Numa praça em Roma, um casal de brasileiros se aproximou. Começamos a conversar. Lá pelas tantas perguntei de onde eles eram. “De São Paulo, e você?” Respondi: “Nós somos de Porto Alegre.” Nós!!! Quanta risada rendeu esse ato falho. Eu e eu. Dupla imbatível, amor eterno, afinidade total. Se você não se atura, melhor não viajar em sua própria companhia. Mas se está tudo bem entre “vocês” saiam por aí e descubram como é bom sentar num café num dia de sol, pedir algo para beber enquanto lê um bom livro, subir até terraços para apreciar vistas deslumbrantes, entrar em lojas e ficar lá dentro o tempo que desejar, entrar num museu e sair dali quando bem entender, caminhar sem trajeto definido nem hora para voltar, pedalar ao longo de um rio ouvindo suas músicas preteridas no iPod, em conexão com seus pensamentos e sentimentos, nada mais. Vergonha? Senti poucas vezes na vida, quando não me reconheci dentro da própria pele. Mas estando em mim, sob qualquer circunstância, jamais estarei só. Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 05/10/2012
Alterado em 05/10/2012 Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |