a tempestade, de Shakespeare — condensado por Charles e Mary Lamb (tradução de Berenice Xavier), Editora Civilização Brasileira
Havia uma ilha no oceano habitada apenas por um velho chamado Próspero e sua filha Miranda, moça muito bonita. Miranda era tão criança quando fora para lá, que não se lembrava de ter visto outra pessoa além do pai. Os dois viviam numa caverna aberta na rocha e dividida em vários compartimentos, num dos quais Próspero guardava os seus livros, que tratavam principalmente de magia, assunto predileto dos homens cultos da época. Próspero achava que o conhecimento dessa arte era-lhe muito útil. Indo por um estranho acaso parar naquela ilha, encantada pela feiticeira Sycorax, que morrera pouco antes de sua chegada — Próspero, graças aos poderes da magia, libertara alguns espíritos que Sycorax aprisionara nos troncos de grandes árvores, porque se recusaram a obedecer às suas ordens perversas. Esses espíritos bons, chefiados por Anel, sempre atendiam à vontade do velho Próspero. Anel, embora não fosse maligno por natureza, gostava de atormentar o monstro Calibã, filho de sua inimiga Sycorax. Este estranho ser disforme, encontrado por Próspero na floresta, tinha aspecto menos humano que um macaco. O velho levou-o para a caverna, ensinou-o a falar e foi sempre muito bondoso para com ele; a índole má herdada de Sycorax, porém, não deixou Calibã aprender nada de bom ou de útil. Assim, aproveitavam-no como escravo, para buscar lenha e fazer os trabalhos mais pesados. Quando ele negligenciava o trabalho, Anel — visível somente aos olhos de Próspero — beliscava-o, algumas vezes empurrava-o na lama, e outras, tomando a forma de um macaco, fazia-lhe caretas. Depois, transformava-se num ouniço-cacheiro, barrava-lhe o caminho, e Calibã receava que as agudas cerdas do animal lhe picassem os pés descalços. Com tais ardis, Ariel o atormentava sempre que ele se descuidava na execução de uma tarefa. Com aqueles poderosos espíritos obedientes à sua vontade, Próspero podia comandar os ventos e as ondas do mar. Assim, por ordem sua, eles provocaram um violento temporal. Próspero mostrou então à filha um grande e belo navio, lutando em meio à tempestade com as ondas bravias, que ameaçavam tragá-lo a todo momento, e esclareceu estar o barco cheio de seres vivos como eles. — Oh! Meu querido pai — suplicou Miranda — se por tua arte provocaste essa violenta tempestade, tem piedade de tão triste sorte. Vê: o navio será feito em pedaços, e as pobres criaturas morrerão todas. Se eu tivesse poder, faria a terra sorver o mar antes que aquele belo navio se despedaçasse com as almas preciosas que abriga. — Não te aflijas, Miranda — respondeu o pai. — Dei ordem para que ninguém, no navio, sofresse dano. O que faço é para teu bem, minha querida filha. Não sabes quem és, nem de onde vens; de mim, sabes apenas que sou teu pai e vivo nesta pobre caverna. Lembras-te do tempo anterior à tua vinda para cá? Não creio, pois tinhas menos de três anos. — Creio que me lembro, pai. — Como? Pela ideia de outra casa ou de outra pessoa? Dize-me, filha, de que te podes lembrar? — Parece-me a recordação de um sonho — disse Miranda — mas antigamente não havia quatro ou cinco criadas a meu serviço? — Sim, e muitas mais. Como é que isso perdura em tua memória? Lembras-te de como chegaste aqui? — Não, pai, não me lembro de mais nada. — Há doze anos, Miranda — continuou Próspero — eu era duque de Milão e tu uma princesa, minha única herdeira. Eu tinha um irmão mais novo, chamado Antônio, no qual confiei totalmente e, gostando de isolamento e de estudos sérios, deixava constantemente a direção dos negócios de Estado ao teu tio, um falso irmão — conforme o provou. Quanto a mim, abandonando todas as preocupações mundanas, enterrei-me entre meus livros, dedicando-me inteiramente a aperfeiçoar meu espírito. Assim, de posse de minha autoridade, Antônio começou a julgar-se o verdadeiro duque. A oportunidade que eu lhe dava de tornar-se popular entre os meus súditos, despertou em sua má índole a orgulhosa ambição de usurpar o meu ducado, o que em breve conseguiu, com o auxílio do rei de Nápoles, príncipe poderoso e meu inimigo. — Mas por que não nos mataram então? — perguntou Miranda. — Minha filha — respondeu o pai — não ousaram fazê-lo por causa da grande afeição que meu povo me dedicava. Antônio nos levou para bordo de um navio, e quando já estávamos a algumas léguas, em mar aberto, obrigou-nos a entrar num pequeno barco, sem leme, vela ou mastro, e ali nos abandonou, segundo penso, para que morrêssemos. Mas um bondoso fidalgo de minha Corte, Gonzalo, meu amigo, supriu às ocultas a embarcação com água, provisões, utensílios e alguns livros, que aprecio mais que meu ducado. — Oh! meu pai — exclamou Miranda — que trabalho devo ter-te dado! — Não, meu amor, tu foste meu anjinho protetor. Teus inocentes sorrisos deram-me forças para suportar o infortúnio. Nossos alimentos duraram até alcançarmos esta ilha deserta; desde então, meu principal prazer foi educar-te, Miranda, e vejo que bem aproveitaste minhas lições. — Deus te recompense, meu querido pai. E agora dize-me: por que razão fizeste erguer-se essa tempestade’? — Por meio dela, Miranda, meus inimigos, o rei de Nápoles e o meu pérfido irmão, foram arremessados a esta ilha. Em seguida, Próspero, com sua varinha mágica, tocou de leve na moça e ela adormeceu, pois o espírito Anel se apresentara nesse momento a seu senhor, para narrar os detalhes da tempestade e contar o que fora feito dos que se encontravam a bordo; e como os espíritos eram invisíveis à Miranda, seu pai não queria que ela o visse conversando — segundo julgaria — com o ar. — Então, meu bravo espírito, como realizaste a tarefa? Anel fez uma vívida descrição da tempestade, do terror dos marinheiros, de como o filho do rei, Ferdinando, fora o primeiro a saltar na água, fazendo com que o rei de Nápoles julgasse ver seu querido filho tragado pelas ondas, perdido, morto. — Mas ele está salvo — prosseguiu Anel — num recanto desta ilha, sentado, de braços cruzados, a lamentar tristemente a perda do pai, que julga ter-se afogado. Não se lhe tocou num fio de cabelo, e seus trajes principescos, embora molhados pela água do mar, nada perderam de seu brilho. — Meu gentil Anel! — disse Próspero. — Traze-o aqui, minha filha precisa ver esse jovem príncipe. E o rei e meu irmão? — Deixei-os — respondeu Anel — à procura de Ferdinando, com poucas esperanças de encontrá-lo, pois julgam tê-lo visto afogar-se. Não falta ninguém da tripulação, embora cada qual se julgue o único sobrevivente, e o navio, conquanto invisível para eles, está a salvo no porto. — Anel, cumpriste plenamente a tua tarefa, porém ainda há mais trabalho. — Mais trabalho? Lembro-lhe, senhor, que prometeu libertar-me. Rogo-lhe não esqueça que lhe prestei valiosos serviços; não menti, não cometi erros, não me queixei nem resmunguei. — Ora essa — disse Próspero — não te lembras mais dos tormentos de que te salvei? Esqueceste a perversa feiticeira Sycorax, encurvada pela idade e inveja? Onde nasceu ela? Fala, dize-me. — Em Argel, senhor — respondeu Anel. — Sim, e terei de dizer-te novamente o que eras, quando te encontrei? Vejo que não te lembras mais. Essa malvada bruxa Sycorax, por suas feitiçarias, terríveis demais para a compreensão humana, foi expulsa de Argel e aqui deixada pelos marinheiros; e como eras um espírito muito delicado para obedecer às suas malditas ordens, ela te encerrou numa árvore, onde te encontrei gritando. Foi esse, lembra-te, o tormento de que te libertei. — Perdoe-me, senhor — tornou Anel, envergonhado por se ter mostrado ingrato. — Obedecerei às suas ordens. — Sim, e eu te libertarei. Deu-lhe ordens e lá se foi Anel, de volta ao lugar onde deixara Ferdinando, que encontrou sentado na relva, com o mesmo ar de tristeza. — Oh! meu jovem senhor — disse o espírito — vou levá-lo imediatamente daqui. Deve ser conduzido à presença de minha senhora, Miranda, para que ela contemple a sua bela pessoa. Vamos, senhor, siga-me. E começou a cantar: No mais profundo das águas, Jaz teu pai amortalhado, Seus olhos pérolas sendo, Seus ossos coral tornados. O que nele é perecível Não mais irá se fanar, Sofre transformação marinha Em algo lindo e sem par. E as sereias, de hora em hora, Por ele dobram os sinos. Escute! Ouço-as agora: din, don, din, don, don. Essa estranha notícia do pai desaparecido veio despertar o príncipe do torpor em que caíra. Seguiu atônito a voz de Anel, até chegar à presença de Próspero e Miranda, que estavam sentados à sombra de uma grande árvore. Ora, Miranda jamais vira outro homem além de seu pai. — Miranda — disse o pai — que estás olhando com esse ar atônito? — Oh! meu pai — respondeu a filha, surpreendida. — Decerto é um espírito. Senhor! Como olha em torno! Acredite, é uma bela criatura. Não é um espírito? — Não, filha — respondeu Próspero — é um ser que se alimenta, dorme e tem sentidos como nós. Este jovem que aí vês estava no navio. Parece um pouco alterado pelo desgosto que sofreu; é, contudo, o que se pode chamar uma bela pessoa. Perdeu seus companheiros e anda à procura deles. Miranda, que julgava terem todos os homens fisionomias severas e barbas grisalhas como seu pai, ficou encantada com o aspecto do belo e jovem príncipe. Ferdinando, vendo uma moça tão bela naquele lugar deserto — e pelos sons suaves que ouvira só esperava maravilhas — pensou que se encontrava numa ilha encantada, e que Miranda fosse a deusa dessa ilha. E a ela se dirigiu como tal. Ela, timidamente, respondeu que não era deusa, mas uma simples moça, e ia falar sobre si mesma, quando Próspero a interrompeu. Estava satisfeito por ver que os dois jovens se admiravam mutuamente, pois era evidente que se tratava, como se diz, de um caso de amor à primeira vista. A fim de pôr à prova a constância de Ferdinando, resolveu levantar-lhe alguns obstáculos. Dirigiu-se ao príncipe com ar severo, acusou-o de ser um espião chegado à ilha com intuito de tirá-la dele, Próspero. — Segue-me — disse. — Vou amarrar-te dos pés ao pescoço, beberás água do mar e terás por alimento, mariscos, raízes secas e cascas de bolotas. — Não — respondeu Ferdinando — resistirei a tal acolhida até que apareça um inimigo mais forte. Desembainhou a espada, mas Próspero, agitando a sua varinha mágica, fixou-o no lugar onde se encontrava, impedindo-o de mover-se. Miranda agarrou-se ao pai, exclamando: — Por que és cruel assim? Tem piedade, pai, respondo por ele. É o segundo homem que vejo e parece-me sincero e leal. — Silêncio — ordenou o pai. — Uma palavra mais, e serás repreendida. Como ousas defender um impostor? Pensas que não existem outros homens porque até agora viste apenas Calibã e ele. Fica sabendo, menina tola, que a maioria dos homens o supera, como ele a Calibã. Dizia isso para pôr à prova, também, a constância da filha, e ela respondeu: — Sou mais humilde, em minhas afeições. Não desejo ver homem mais belo. — Vem, rapaz — disse Próspero —, pois não está em teu poder desobedecer-me. — Realmente — respondeu Ferdinando; ignorando ser a vara mágica que o privava do poder de resistência, estava atônito por ver-se tão estranhamente compelido a seguir Próspero. Olhando para Miranda até enquanto pôde vê-la, lá atrás, disse, ao entrar na caverna com o velho: — Meu vigor está preso como num sonho, mas as ameaças deste homem, e a fraqueza que sinto, parecer-me-iam leves se eu pudesse avistar, de minha prisão, essa linda moça. Próspero, contudo, não conservou o jovem na cela por muito tempo; fez logo o prisioneiro sair e incumbiu-o de pesada tarefa, fazendo a filha saber do árduo trabalho que lhe fora imposto; fingindo ir para o gabinete, ficou escondido vigiando os dois. Ordenara a Ferdinando que empilhasse pesados toros de madeira, e como os filhos de reis não estão habituados a trabalhos pesados, Miranda não tardou a notar que seu amado estava quase morrendo de cansaço. — Ah! — disse ela — não te esforces tanto. Meu pai está entregue aos seus estudos e isso o ocupará por umas três horas. Repousa, suplico-te. — Oh! Minha querida senhora, não ouso fazer tal. Tenho de terminar esta tarefa, e somente depois repousarei. — Senta-te, eu carregarei os toros enquanto descansas. Mas Ferdinando não concordou de modo algum, e em vez de ajudar, Miranda atrapalhava, pois começaram uma longa conversa, e o trabalho prosseguia muito lentamente. Próspero, que impusera a tarefa a Ferdinando apenas para pôr à prova o seu amor, não estava ocupado com seus livros, como a filha julgara; ao lado deles, invisível, ouvia tudo que diziam. Ferdinando perguntou-lhe o nome e ela lhe disse, mas acrescentou que, assim fazendo, desobedecia a ordens expressas do pai. Próspero apenas sorriu a essa primeira mostra de desobediência da filha, pois fazendo-a, com as artes da magia, apaixonar-se de modo tão repentino, não se irritava por vê-la demonstrar o seu amor, deixando de obedecer às suas ordens. Ouviu contente uma longa tirada de Ferdinando, na qual ele declarava amá-la mais que a todas as outras moças que já vira. Em resposta aos louvores à sua beleza, que, segundo o príncipe, sobrepujava a das mais lindas mulheres do mundo, Mirada falou: — Não me recordo do rosto de nenhuma mulher, nem vi jamais outro homem senão a ti, meu bom amigo, e meu querido pai. Não sei como são os semblantes fora daqui, mas, acredite, não desejaria no mundo outra companhia senão a tua, nem minha imaginação pode formar outra imagem que me agradasse, senão a tua. Porém, receio estar falando com excessiva liberdade, e esquecendo os ditames de meu pai. A isso, Próspero sorriu e fez um aceno, como a dizer: “Tudo vai exatamente como desejei. Minha filha será rainha de Nápoles”. Então, em outro belo discurso — porque os jovens príncipes falam em linguagem de corte —, Ferdinando disse à inocente Miranda que era herdeiro do rei de Nápoles, e que ela, Miranda, seria a sua rainha. — Ah! que loucura chorar pelo que me causa prazer! Respondo-te, em linguagem simples e em santa inocência: Serei tua esposa, se assim desejas. Próspero evitou os agradecimentos de Ferdinando, tornando-se visível aos dois. — Nada receies, filha, ouvi e aprovo o que disseste, e quanto a ti, Ferdinando, se te tratei com excessiva severidade, indenizo-te ricamente, dando-te minha filha. Todos os trabalhos tinham como fim experimentar o teu amor, e suportaste nobremente a prova. Assim, como um presente a que teu amor verdadeiro fez jus, recebe a minha filha e não sorrias, se digo que a considero acima de todo louvor. Por fim, alegando ter alguns negócios urgentes para resolver, disse-lhes que se sentassem e conversassem até a sua volta, recomendação que Miranda parecia disposta a obedecer de bom grado. Deixando-os, Próspero chamou o espírito Anel, que apareceu num abrir e fechar de olhos, ansioso por narrar o que fizera com o irmão do amo e o rei de Nápoles. Contou que os deixara desvairados de medo pelas coisas estranhas que os fazia ver e ouvir. Fatigados de andar, e famintos, surgia-lhes de súbito um delicioso banquete, e no momento exato em que iam começar a comer, Anel tornava-se visível, na forma de uma harpia — monstro voraz, alado — e o festim se evolava. Depois, para maior espanto deles, a falsa harpia falava, lembrando-lhes a cruel expulsão de Próspero, largado no mar para que morresse com a filhinha. Essa era a causa dos horrores que sofriam agora, acrescentava. O rei de Nápoles e Antônio se arrependeram da injustiça cometida com Próspero; segundo Anel, esse arrependimento era sem dúvida sincero, e ele, embora apenas um espírito, não podia deixar de lastimá-los. — Traze-os aqui, então, Anel — disse Próspero — pois se tu, que és apenas um espírito, lamentas as suas infelicidades, poderia eu, que sou humano, recusar-lhes a minha compaixão? Traze-os, rápido, meu bom Anel. Num instante, o espírito voltou, seguido do rei, de Antônio e do velho Gonzalo, que os acompanhava, intrigado com a estranha música que Anel tocava e que parecia vinda do ar, a fim de trair os náufragos à presença de seu senhor. Gonzalo era o mesmo que, com tanta bondade, fornecera a Próspero livros e provisões, no momento em que seu maldoso irmão o deixara num bote aberto, para que morresse no mar. O desgosto e o terror haviam a tal ponto embotado os sentidos de todos, que nem reconheceram Próspero. O mago falou primeiro ao bom velho Gonzalo, dizendo que ele salvara sua vida; depois o irmão e o rei vieram a saber que aquele era Próspero, a quem tanto haviam prejudicado. Antônio, com lágrimas nos olhos e palavras de tristeza e arrependimento, implorou perdão, e o rei expressou um remorso sincero por havê-lo auxiliado a depor o irmão. Próspero perdoou-os, e depois de ambos se comprometerem a restaurá-lo em seu ducado, dirigiu-se ao rei de Nápoles: — Reservo-te também uma dádiva. Abrindo a porta, mostrou-lhe Ferdinando, que jogava xadrez com Miranda. Nada poderia superar a alegria de pai e filho nesse inesperado encontro, pois cada qual julgava o outro morto na tempestade. — Oh! Maravilha! — disse Miranda. — Que nobres criaturas! Deve ser admirável o mundo onde existe gente assim. O rei estava quase tão atônito quanto o filho, ante a beleza e a graça inexcedíveis da jovem Miranda. — Quem é esta moça? Parece a deusa que nos separou e reuniu novamente. — Não, pai — respondeu Ferdinando, sorrindo, ao verificar que o pai caíra no mesmo engano que ele. — Ela é mortal, mas, pela imortal Providência, é minha. Escolhi-a quando não podia pedir teu consentimento, meu pai, pois não julgava que vivesses ainda. É a filha de Próspero, famoso duque de Milão, cujo renome não me era desconhecido, mas que jamais vira: dele recebi uma nova vida, e o duque se tornou para mim um segundo pai, dando-me aquela a quem amo. — Então devo ser também teu pai — disse o rei. — Mas como é estranho ter de pedir perdão à minha filha! — Não falemos mais nisso — interveio Próspero. — Não recordemos problemas passados, já que terminaram tão bem. O duque Próspero abraçou Antônio, reiterando-lhe o seu perdão, e disse que uma sábia providência permitira fosse ele arremessado de seu pobre ducado de Milão para que a filha herdasse a coroa de Nápoles, pois em virtude daquele encontro, na ilha deserta, o filho do rei viera a amar Miranda. Essas bondosas palavras, destinadas a consolar o irmão, produziram em Antônio tal sentimento de vergonha e remorso, que ele chorava a ponto de não poder falar; o bom velho Gonzalo também chorou, presenciando essa feliz reconciliação, e rogou pela felicidade do jovem par. Próspero revelou, então, que o navio estava a salvo, no porto, com todos os marinheiros a bordo, e que ele e sua filha os acompanhariam de volta, na manhã seguinte. — Até lá, rogo-lhes que partilhem dos alimentos que minha pobre cabana lhes pode oferecer, e para distraí-los, à noite, contarei a história de minha vida, desde que desembarquei nesta ilha deserta. Chamou Calibã para preparar a refeição e arrumar a caverna; as pessoas ali reunidas ficaram admiradas com o aspecto desajeitado e selvagem do feio monstro, que, segundo Próspero, era o seu único criado. Antes de deixar a ilha, Próspero dispensou Anel do serviço, para grande alegria do sagaz espírito, que embora um servo fiel, ansiava sempre por completa liberdade, a fim de errar sem controle no espaço, como um pássaro selvagem, sob as verdes folhagens, entre frutos saborosos e flores de suave perfume. — Meu gracioso Anel — disse ele, ao libertar o pequeno espírito — vou sentir a tua falta, mas dar-te-ei a liberdade. — Obrigado, querido amo — respondeu Anel. — Mas peço-lhe, antes que dispense a ajuda de seu fiel espírito, permissão para acompanhar com ventos favoráveis, o navio até seu porto. Então, senhor, quando estiver livre, viverei alegremente. E Anel cantou essa linda canção: De abelhas na companhia Doce alimento procuro, Deito-me em corola florida Quando a coruja pia no escuro. Montado no morcego eu vôo Empós o verão. Alegria! Vivo entre flores e entoo Hosana ao novo dia! Próspero enterrou bem fundo a varinha de condão e os livros mágicos, pois estava decidido a nunca mais fazer uso de artes de magia. Tendo vencido seus inimigos, e feito as pazes com o irmão e o rei de Nápoles, nada mais lhe restava para completar sua felicidade senão voltar à terra natal, tomar posse de seu ducado e assistir às felizes núpcias de sua filha com o príncipe Ferdinando, que, conforme dissera o rei, seriam realizadas sem demora, com grande esplendor, logo que chegassem a seu destino. Depois de uma viagem feliz, sob os auspícios de Anel, não tardaram a desembarcar em Nápoles. Shakespeare, Charles e Mary Lamb
Enviado por Germino da Terra em 28/09/2012
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