retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A vida sem princípio1, de Henry Thoreau (parte II)
A corrida migratória para a Califórnia 5, por exemplo, e a atitude não apenas de comerciantes, mas ainda dos chamados filósofos e profetas em rela­ção a ela, refletem a maior das desgraças da humani­dade. E inacreditável que tantos se disponham a viver em função da sorte, para então reunir os meios de comandar o trabalho dos menos sortudos, sem con­tribuir em nada para o bem-estar da sociedade! E é isso que consideram espírito empreendedor! Nunca ouvi falar de um desenvolvimento mais espantoso da imoralidade do comércio e das formas vulgares de se ganhar a vida. A filosofia, a poesia e a religião de homens assim não valem mais que a secreção de fun­gos. O porco, que ganha sua vida fuçando, revirando o solo, se envergonharia de tal companhia. Se pu­desse comandar a riqueza de todo o mundo com a ponta dos dedos eu certamente não pagaria tanto por ela. Até Maomé sabia que Deus não estava brincando ao criar o mundo. Tudo isso faz de Deus um senhor cheio de dinheiro que se diverte com a visão de uma humanidade sôfrega a se engalfinhar por um punhado de moedas jogadas para o alto. Rifar o mundo! Passar uma rifa para ver quem ganha a subsistência nos do­mínios da Natureza! Que crítica, que sátira às nossas instituições! O fim disso tudo será a humanidade se enforcando num galho de árvore. Terá sido apenas isso o que os homens aprenderam com todos os pre­ceitos de todas as Bíblias? E será que a última e mais admirável invenção da raça humana é apenas uma en­xada melhor para revirar a lama? É esse o ponto de encontro entre orientais e ocidentais? Deus terá mes­mo nos instruído a ganhar a vida cavando terras em que nunca plantamos e nos premiaria, por acaso, com montões de ouro?
Deus doou ao homem correto um certificado que lhe garantia comida e roupa, mas o homem deso­nesto arrombou o cofre de Deus, encontrou um fac­-símile do certificado e acabou conseguindo também comida e roupa. Estou falando de um dos maiores sistemas de falsificação já vistos. Eu não sabia que a humanidade sofria pela falta de ouro. Eu mesmo vi pouco ouro em toda a minha vida. Sei que é um metal muito maleável, mas a sabedoria é ainda mais maleável. Um grão de ouro dourará uma superfície bem grande, mas um grão de sabedoria cobre uma área muito maior.
O    homem que escava em busca de ouro nas ra­vinas das montanhas é um jogador tão inveterado quanto um outro que joga cartas nos salões de San Francisco. Que diferença existe entre sacudir uma pe­neira e sacudir dados? Se você vence, a sociedade sai perdendo. O escavador de ouro é inimigo do traba­lhador honesto, independentemente de quaisquer controles ou compensações porventura existentes. Não basta me dizer que você trabalhou muito para conseguir o seu ouro. O Diabo também trabalha mui­to. Os malfeitores muitas vezes enfrentam dificul­dades de diversos tipos. O observador mais simplório entra nas minas e diz que achar ouro é tal como ga­nhar na loteria e que, obtido dessa forma, não equi­vale ao salário pago a um trabalhador honesto. Mas ele mesmo acaba esquecendo na prática o que viu, pois percebeu apenas o fato, e não o princípio, e se estabelece como comerciante perto das minas; ou seja, ele compra um bilhete do que em geral acaba por ser outra loteria, de identidade menos óbvia.
Certa noite, li o relato de Howitt 6sobre as mi­nas de ouro da Austrália, e durante toda a madrugada minha mente ficou ligada nas imagens: numerosos vales e seus riachos, todos recortados de fossas féti­das com três a trinta metros de profundidade e dois metros de largura, tão grudadas umas nas outras quanto possível, parcialmente cheias de água. . . tal é o terreno para onde os homens se deslocam furiosa­mente para cavar suas fortunas. . . sem certeza de começar por aqui ou por ali. . . Tudo o que sabem é que o ouro está em algum lugar debaixo de suas tendas. . . Por vezes cavando até cinquenta metros de profundidade para achar o veio ou então deixar de achá-lo por uma diferença de trinta centímetros... transformados em demônios e indiferentes a seus próprios direitos, pela sede de riqueza... Vales in­teiros, às vezes com cinquenta quilômetros de exten­são, subitamente perfurados pelos poços dos minei­ros, centenas deles se afogando. . . com água até os joelhos, cobertos de lama e argila, trabalham dia e noite, e morrem vítimas das intempéries e das doen­ças. Depois de ler um relato desses, e depois de es­quecê-lo em parte, fiquei pensando, casualmente, na vida insatisfatória que venho levando pelo fato de fazer o que fazem os outros; e ainda tomado pela visão das escavações, perguntei por que eu não deve­ria peneirar algum ouro por dia ainda que me ocupasse das pepitas menores —, por que eu não deveria fincar uma sonda para descobrir ouro dentro de mim, para então trabalhar nessa mina. Existe em você um Ballarat, um Bendigo 7, e que diferença faz se o terreno está enlameado? De qualquer forma, posso encontrar um caminho, mesmo solitário, estrei­to e tortuoso, pelo qual poderia andar com amor e respeito. Em qualquer circunstância que um homem se separe da multidão e siga seu próprio caminho com essa disposição, ele acaba chegando a uma bifur­cação. Os viajantes comuns não enxergarão mais que um buraco na cerca. Mas o caminhante solitário opta­rá por cruzar as muitas terras do seu caminho da verdade.
Os homens se apressam em chegar à Califórnia e à Austrália como se o verdadeiro ouro pudesse ser encontrado naquelas paragens; mas isso significa es­colher a direção inteiramente oposta ao local onde está o ouro. Eles vão escavar cada vez mais longe do rumo verdadeiro e atingem sua maior infelicidade exatamente quando se consideram muito bem suce­didos. Não haverá ouro no nosso solo nativo? Não há um rio que vem das montanhas douradas e desce pelo nosso vale nativo? E não vem ele desde antes da primeira era geológica, trazendo partículas bri­lhantes e formando para nós as pepitas? É bem estra­nho dizer isso, mas no caso de um escavador buscar secretamente os caminhos de prospecção desse ouro verdadeiro, não há perigo de alguém segui-lo ou de querer chegar à sua frente. Ele pode reivindicar e pesquisar até mesmo todo o vale, tanto suas porções cultivadas quanto as virgens, e viver em paz pelo resto de seus dias, pois ninguém virá disputar seu território. Ninguém se importará com sua bateia com seus apetrechos. Ele não estará limitado a reivin­dicar apenas alguns metros quadrados, como em Bal­larat; poderá pesquisar em qualquer lugar e passar o mundo inteiro pela peneira.
Eis o que Howitt diz sobre o homem que en­controu a enorme pepita de quinze quilos nas minas de Bendigo, na Austrália: “Ele logo começou a be­ber; comprou um cavalo e começou a andar por todos os lados, geralmente a galope, e, ao encontrar gente, perguntava se sabiam quem era ele, para em seguida lhes informar gentilmente que ele era ‘o maldito in­feliz que tinha encontrado a pepita’. Um dia quase perdeu os miolos ao galopar a toda a velocidade e bater num galho de árvore”. Creio, no entanto, que não havia perigo de isso acontecer, pois ele já perde­ra os miolos ao bater de cabeça na tal pepita. Howitt acrescenta: “É um homem irremediavelmente per­dido”. Mas ele é apenas um tipo de uma classe. São todos uns desastrados. Vejam os nomes de alguns lo­cais em que eles gostam de ficar escavando: planície do Asno, ravina da Cabeça do Carneiro, Bar dos As­sassinos, etc. Não haverá uma sátira contida nesses nomes? Não importa para onde arrastem sua riqueza suspeita; para mim esses homens sempre morarão em lugares tais como a planície do Asno, e talvez no Bar dos Assassinos.
A mais recente aplicação de nosso dinamismo tem sido a pilhagem dos cemitérios do istmo de Darien, e parece que isso ainda mal começou; de acordo com alguns relatos recentes, o legislativo de Nova Granada já está apreciando pela segunda vez um pro­jeto de lei que regula essa espécie de mineração 8; escreve um correspondente do Tribune: “Na estação seca, quando o tempo permitir uma melhor prospec­ção da região, não há dúvida de que serão encontra­das outras guacas (cemitérios) riquíssimas”. Diz ele aos imigrantes: “Não venha antes de dezembro; es­colha a rota do istmo ao invés da que passa por Boca del Toro; não traga bagagem demais e não se atra­vanque com uma barraca; traga um bom par de co­bertores; uma picareta, uma pá e um machado de boa qualidade é quase tudo o que será necessário”; conselhos desse tipo poderiam ser encontrados no Guia de Burker 9. Ele finaliza assim, com grifos e ver­salete: “Se você está se dando bem em sua terra na­tal, então fique onde está”. Não é inteiramente injusto interpretar essas palavras assim: “Se você está prosperando com a pilhagem dos cemitérios de sua terra, fique por aí mesmo”.
Mas será preciso ir à Califórnia para ilustrar esses fatos? Ela é filha da Nova Inglaterra 10 criada em nossa própria escola e igreja.
É notável que haja tão poucos defensores da moralidade entre todos os pregadores. Os profetas se dedicam apenas a perdoar os atos dos homens. A maioria dos reverendos mais antigos, os illuminati de nossa época, com um sorriso gracioso e nostálgico, entre uma inspiração e um arrepio, me aconselha a não ser tão sensível quanto a essas coisas a englo­bar tudo, ou seja, a juntar tudo num monte de ouro. O melhor dos conselhos que recebi sobre esses assun­tos foi simplesmente degradante. Seu argumento central foi: “Não vale a pena para você tentar refor­mar o mundo no que toca a essas questões. Não per­gunte como passaram manteiga no seu pão, porque você ficará enojado”. E assim por diante. Seria me­lhor morrer logo de fome do que perder a inocência no processo de ganhar assim o pão de cada dia. O homem sofisticado que não traz em si um outro não sofisticado nada mais é do que um anjo negro. Con­forme vamos envelhecendo, tornamo-nos mais gros­seiros, relaxando um pouco nossa disciplina e, até certo ponto, deixamos de obedecer a nossos melho­res instintos. Mas devemos manter nossas posições até o limite da sanidade, sem ligar para as chacotas dos mais infelizes do que nós.
Nem mesmo em nossa ciência e filosofia encon­tramos com frequência uma apreciação verdadeira e absoluta das coisas. O espírito sectário e intolerante firmou seus cascos até mesmo entre as estrelas do céu. Para descobri-lo, basta levantar a questão de as estrelas serem ou não habitadas. Por que deveríamos conspurcar os céus tal como a Terra? Foi uma pena que se descobrisse ser o dr. Kane um maçom, como também Sir John Franklin. Mas foi uma insinuação bem cruel que teria sido essa a razão para o primeiro partir em busca do segundo 11. Não existe neste país uma única revista importante que ouse publicar sem comentários o que uma criança tenha a dizer so­bre alguns assuntos importantes. A matéria teria de passar pelos D.T.s 12. Eu preferiria a opinião dos co­libris 13.
Ao assistir ao enterro da humanidade, você pre­sencia um fenômeno natural. Um pouco de raciocínio é o coveiro deste mundo.
Não conheço muitos intelectuais de mentalidade tão ampla e de espírito tão liberal que permitam ao próximo pensar alto em sua companhia. A maioria deles, logo no começo do diálogo, se põe a defender alguma instituição na qual parece ter interesse; ou seja, adota uma perspectiva particular e não univer­sal. Eles sempre tentarão colocar seu próprio teto entre você e a luz do céu, mas você prefere uma vista livre para a imensidão dos céus. Aí eu grito: tirem suas teias de aranha da minha frente! Limpem suas vidraças! Fico sabendo em alguns liceus que foi decidido não debater assuntos relativos à religião. Mas como será que eu, o conferencista, vou saber qual a religião da plateia e quando estarei falando ou não dela? Já pisei uma arena dessas e fiz tudo o que pude para colocar francamente minhas experiências religiosas; a plateia sequer suspeitou disso. Minha palestra lhes pareceu tão inofensiva quanto um pala­vrório sem sentido. Se ao invés disso eu lhes tivesse lido a biografia dos maiores patifes da história, eles talvez ficassem pensando que eu tinha escrito a bio­grafia dos diáconos de sua igreja. Em geral, me per­guntam coisas como “De onde você vem?”, ou então “Para onde você vai?” Uma pergunta muito mais pertinente foi aquela que certa vez escutei um ou­vinte fazer a seu companheiro do lado: “Em favor de que são as conferências dele?” Fiquei abismado.
Falando imparcialmente, quero dizer que os melhores homens que conheço não são serenos, não são um universo autônomo. Na sua maior parte, eles prestam muita atenção às convenções, sabem lison­jear e preparam seu jogo de cena com mais cuidado do que os outros. Escolhemos o granito para pavi­mentar nossas casas e nossos celeiros; fazemos cercas de pedra; mas nós mesmos não temos o pavimento da granítica verdade, a mais rudimentar das rochas primitivas. Nossos esteios estão podres. Do que po­derá ser feito um homem se não de algo que conside­ramos coerente com a mais pura e sutil das verdades? Frequentemente acuso meus melhores amigos de se­rem muito frívolos; pois além de não observarmos hábitos e deferências, não nos ensinamos mutua­mente as lições de honestidade e de sinceridade comuns aos animais, nem as lições de constância e de solidez comuns às rochas. No entanto, a culpa é em geral mútua, pois não é nosso costume exigirmos mais uns dos outros.
Toda aquela excitação que houve em torno de Kossuth 14vejam como foi característica, embora superficial! Foi apenas um outro tipo de política, ou de dança. Por todo o país houve gente discursando em sua homenagem, mas todos expressavam a opinião ou a falta de opinião da multidão. Nin­guém usou a verdade como base. Nada se fez além de arrebanhar as pessoas, encostá-las umas nas ou­tras como sempre, sem encostar o conjunto em coisa alguma; os hindus, da mesma forma, concebiam o mundo pousado nas costas de um elefante, o elefante em cima de uma tartaruga, a tartaruga sobre uma serpente, e nada tinham para colocar sob a serpente. Tudo o que conseguimos com aquele alvoroço todo foi o chapéu de Kossuth.
A maior parte de nossas conversas comuns é também oca e ineficaz. É um encontro de superficia­lidades. Quando nossa vida não mais é interior e pri­vada, a conversação degenera em bisbilhotices. É di­fícil encontrar um vizinho que nos diga algo além do que leu no jornal ou ouviu de outro vizinho; e em geral a única diferença entre nós e nosso vizinho é que ele leu o jornal, ou saiu para tomar chá, e nós fizemos o contrário. À medida em que nossa vida in­terior vai naufragando, mais constantes e desespe­radoras são nossas incursões à agência do correio. Po­dem estar certos disso: o pobre coitado que sai de lá com o maior número de cartas, orgulhoso de exibir o volume de sua correspondência, não recebe há mui­to tempo notícias de si mesmo.
 
Henry Thoreau
Enviado por Germino da Terra em 06/09/2012
Alterado em 06/09/2012
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