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A vida sem princípio1, de Henry Thoreau
Texto extraído de Desobedecendo — a desobediência civil & outros escritos, traduzido por José Augusto Drummond, tradução cedida pro Círculo do Livro por cortesia da Editora Rocco Ltda. (acho que em 1986 — ao menos foi quando eu li) Há algum tempo, no auditório de um liceu, percebi que o conferencista tinha escolhido um tema que lhe era por demais alheio; dessa forma, não conseguiu me interessar tanto quanto seria possível. Ele se ocupou de coisas estranhas à sua paixão, de coisas mais próximas de suas extremidades e de sua pele. Nesse sentido, a conferência não tinha um pensamento realmente central ou centralizador. Minha vontade era que ele falasse sobre a mais íntima de suas experiências, tal como faz o poeta. Nunca me senti tão lisonjeado quanto no dia em que alguém pediu a minha opinião e prestou atenção ao que eu disse. Fico surpreso e também satisfeito quando isso acontece, pois é uma forma rara de fazer uso de minha pessoa; é como estar acostumado a usar uma ferramenta. Em geral, se querem alguma coisa de mim, os homens se limitam a perguntar quantos hectares estou atribuindo às suas propriedades — pois sou agrimensor — ou, no máximo, quais são as novidades banais que abarrotam minha mente. Nunca se interessam pela minha carne; preferem minha casca. Certa vez recebi a visita de um homem que vinha de bem longe para me convidar a proferir uma conferência sobre a escravidão; conforme a conversa foi avançando, descobri que ele e sua rodinha de amigos esperavam ter para si sete oitavos da conferência, deixando para mim apenas um oitavo. Por isso, recusei o convite. Considero evidente que quando sou convidado a fazer uma conferência em qualquer lugar — e tenho tido alguma experiência nessa atividade 2 — é porque existe a vontade de saber o que eu penso a respeito de um assunto, muito embora eu possa ser o maior idiota desse país; não creio que se espere de mim comentários meramente agradáveis ou então que visem à aprovação da plateia; é por isso que minha decisão é sempre a de ministrar aos meus ouvintes uma forte dose de mim mesmo. Eles me chamaram, se comprometeram ao pagamento, e estou disposto a me dar a eles, mesmo que eu acabe sendo a coisa mais maçante que jamais lhes aconteceu. Quero agora então dizer algo semelhante a vocês, meus leitores. Já que vocês são os meus leitores e eu não tenho sido um viajante assíduo, não vou ficar falando de pessoas que estão a milhares de quilômetros daqui; quero ficar tão perto de vocês quanto possível. O tempo é curto; vou deixar de lado todos os elogios e reter todo o criticismo. Vamos pensar sobre a maneira como vivemos nossas vidas. Este mundo é um império dos negócios. Que agitação interminável! Quase toda noite sou acordado pelo chiado da locomotiva. Meus sonhos são interrompidos. Os dias de descanso simplesmente não existem. Seria glorioso ver uma única vez a humanidade desocupada. Só há trabalho, trabalho, trabalho. É difícil conseguir um caderno de folhas lisas para registrar meus pensamentos 3, quase todos são pautados para facilitar a contabilidade de dólares e centavos. Certa vez estava tomando notas de campo, e um irlandês imaginou que eu estava calculando meu pagamento. Se um homem fica aleijado para toda a vida por ter sido jogado de uma janela quando ainda criança, ou se um outro enlouquece de medo dos indígenas, lamenta-se a sorte de ambos principalmente por terem ficado incapazes. . . para os negócios! Creio que nada, nem mesmo o crime, se opõe mais à poesia, à filosofia e, acima de tudo, à vida, do que essa incessante movimentação dos negócios. Existe um sujeito ganancioso, bruto e turbulento que vive nos arredores de nossa cidade e que pretende construir um muro ao pé do morro, acompanhando a borda de sua várzea. Os deuses quiseram afastá-lo das brigas e lhe meteram essa ideia na cabeça, e ele quer que eu passe três semanas ajudando nas escavações. No final, o que vai acontecer é que ele talvez ganhe algum dinheiro a mais para guardar e legar a seus herdeiros, que o gastarão tolamente. Se eu aceitar esse trabalho, serei elogiado pela maioria de meus vizinhos como pessoa ativa e trabalhadora; mas se eu preferir me dedicar a certas tarefas que dão um lucro autêntico muito maior — embora rendam pouco dinheiro —, pode ser que eles tendam a me considerar um vadio. No entanto, como não preciso ser controlado pelo rigor de um trabalho sem sentido, e como nada enxergo de elogiável no empreendimento dessa pessoa — nem em muitos empreendimentos de nosso governo e de outros —, prefiro aprender as lições de uma escola diferente; não importa para mim que prazer aquela pessoa ou aqueles governos acaso consigam com seus afazeres. Se um homem gasta a metade de cada dia a passear pelas florestas simplesmente por gostar delas, arrisca-se a ser considerado um preguiçoso; mas se ele gasta o dia inteiro como especulador, devastando a floresta e provocando a calvície precoce da terra, aí então ele ganhará a admiração de seus concidadãos como pessoa ativa e empreendedora. Pode uma cidade se interessar por suas florestas apenas para acabar com elas?! A maioria dos homens se consideraria insultada se recebesse uma proposta para se ocupar de atirar pedras por cima de um muro e, depois, atirá-las de volta ao lugar de origem, apenas para ganhar seu salário. No entanto, há muitos homens que atualmente não têm empregos mais úteis do que esse. Quero dar um exemplo: numa manhã de verão, algum tempo atrás, e bem cedo, vi um vizinho caminhando ao lado de sua parelha de animais, puxando com dificuldade uma pesada pedra talhada amarrada por baixo do eixo da carroça; a cena sugeria uma atmosfera de operosidade — a jornada iniciada, a testa suando, uma reprimenda viva a todos os preguiçosos e vadios; ele parava em frente a seus animais, deslocava-se para o lado com um movimento preciso de seu chicote piedoso e esperava que a parelha o ultrapassasse. Pensei comigo mesmo: essa é a labuta para cuja proteção existe o Congresso Nacional — o labor honesto e viril, tão íntegro quanto a duração de um dia, que torna doce o pão e mantém doce a sociedade, que todos os homens respeitam e consagram. Ali vai um membro da sagrada legião, executando a tarefa pesada e irritante, mas necessária! De fato, senti-me um pouco envergonhado, pois assisti a essa cena de minha janela e não estava do lado de fora, me ocupando com algo parecido. O dia avançou, e à noitinha passei em frente à casa de um outro vizinho — que tem muitos criados, gasta muito mal o seu dinheiro e nada acrescenta à prosperidade geral — e vi aquela pedra matinal ao lado de uma construção extravagante com que esse Lorde Timothy Dexter4 pretende embelezar o ambiente; nesse instante, desapareceu toda a dignidade que meus olhos tinham enxergado na labuta matinal do outro vizinho. É minha opinião que o sol merece iluminar trabalhos mais úteis do que esse. Devo acrescentar que o contratante desse trabalho, depois disso, fugiu da cidade, sem pagar suas dívidas para com boa parte dos habitantes; depois de passar pelo tribunal, ele se estabeleceu em outro lugar e novamente se transfigurou em benfeitor das artes. Com pouquíssimas exceções, as formas de ganhar dinheiro são todas degradantes. Se você fez alguma coisa pela qual recebeu apenas dinheiro, ai então você foi vadio de verdade, ou algo pior ainda. Se o trabalhador recebe nada mais que o dinheiro pago pelo empregador, ele é esbulhado, ele se esbulha. Se você deseja ganhar dinheiro como escritor ou conferencista, é preciso ser popular, e isso significa um tropeção vertical. A comunidade está mais ansiosa por remunerar os serviços que são mais desagradáveis de executar. Você acaba sendo pago para ser algo menos que um homem. O Estado, em geral, é também incapaz de premiar mais sabiamente o trabalho de qualidade. Até mesmo o poeta laureado prefere cantar outras coisas que não as crônicas da realeza. É preciso suborná-lo com uma pipa de vinho, e pode ser que um outro poeta abandone sua musa para disputar essa mesma pipa. No que diz respeito a meu próprio ofício, meus empregadores não se interessam nem mesmo pelo tipo de trabalho topográfico que eu faria com o maior prazer. Eles prefeririam que eu fizesse um trabalho grosseiro e sem capricho e — ai! — sem qualidade. Quando digo que há diversas formas de medir terras, meu contratante geralmente se interessa pela que lhe pode garantir uma propriedade maior e não pela mais correta. Certa vez inventei um método para medir lenha empilhada e tentei introduzi-lo em Boston; mas lá o encarregado das medições me disse que os vendedores não queriam que sua lenha fosse medida corretamente — ele mesmo já era considerado preciso demais pelos vendedores, que, por causa disso, preferiam fazer as medições em Charlestown, do outro lado da ponte. O objetivo do trabalhador deveria ser o de fazer bem um certo trabalho, e não o de ganhar a vida, ou de arranjar “um bom emprego”; e seria mais econômico, mesmo em termos pecuniários, que uma comunidade remunerasse seus trabalhadores tão generosamente a ponto de eles não se sentirem ocupados em trabalhos cujos fins sejam inferiores, ou mesmo em seu mero sustento, mas sim naqueles de fins científicos ou até mesmo morais. Não contrate um homem que faça seu trabalho por dinheiro, mas sim o que trabalha com gosto pelo que faz. É realmente notável: poucos homens têm empregos tão bons, na sua própria opinião, a ponto de neles permanecerem perante a perspectiva de um pouco de dinheiro ou fama. Leio muitos anúncios que clamam por jovens dinâmicos, como se o dinamismo fosse tudo de que um jovem pode dispor. No entanto, já fui surpreendido por pessoas que me abordaram com a maior autoconfiança para me propor — e já sou adulto — a participação num empreendimento delas, como se eu nada tivesse para fazer, como se minha vida até então fosse um fracasso completo. Com que duvidosa distinção elas me honraram! Parece que me encontraram no meio do oceano, nadando contra a correnteza e sem rumo, e se propuseram a me salvar com suas ofertas! Que diriam os agentes de seguros se eu as aceitasse? Não, não! Não estou desempregado a essa altura da viagem. Para dizer a verdade, quando era menino e vadiava pelo porto de minha cidade, vi um anúncio que convocava homens saudáveis para serem marinheiros; e embarquei logo que atingi a maioridade. A comunidade não tem suborno capaz de tentar um homem sensato. É possível levantar dinheiro suficiente para perfurar um túnel numa montanha, mas não é possível levantar dinheiro suficiente para contratar um homem que se ocupe com a sua própria vida. Um homem eficiente e valoroso faz o que pode, quer a comunidade lhe pague ou não. Os ineficientes oferecem sua ineficiência a quem pagar mais, e sempre anseiam por uma colocação. Seria de se supor que eles raramente ficassem desapontados. Talvez eu seja excepcionalmente cioso de minha liberdade. Sinto que minha ligação e minha obrigação com a sociedade são ainda tênues e passageiras. Ganho a vida com alguns serviços bem leves que me permitem ser um pouco útil a meus contemporâneos, e, no entanto, essas tarefas são ainda um prazer para mim, e raramente me lembro de que são uma obrigação. Por enquanto tenho tido sucesso nisso. Mas prevejo que, se minhas necessidades aumentassem muito, então o trabalho necessário para dar conta delas se tornaria uma labuta enfadonha. Se eu vendesse tanto minhas manhãs quanto minhas tardes à comunidade — e parece ser isso o que a maioria faz —, tenho certeza de que nada me restaria por que valesse a pena viver. Espero, portanto, nunca trocar meus direitos naturais por um prato de sopa. Quero sugerir que um homem pode ser bastante trabalhador e no entanto gastar mal o seu tempo. Não existe um desastrado maior do que o sujeito que gasta a maior parte de sua vida no ato de ganhar a vida. Todos os grandes empreendimentos se sustentam por si mesmos. O poeta, por exemplo, deve sustentar o corpo com sua poesia, assim como uma máquina a vapor que aplaina a madeira se alimenta da serragem que aquece suas caldeiras. Deve-se ganhar a vida com o que é vital. Mas assim como se acredita que noventa e sete dentre cem comerciantes fracassam, também fracassa a vida da maioria dos homens quando se baseia num critério tão exigente; podemos profetizar falências com toda a certeza. Vir a este mundo apenas como herdeiro de uma fortuna não é nascer; é ser natimorto. Ser sustentado pela caridade dos amigos ou por uma pensão governamental — desde que se consiga continuar respirando — é entrar para um asilo de pobres; não importam os belos sinônimos empregados para batizar essas relações. Aos domingos, o pobre endividado vai à igreja para fazer um balanço de sua situação e evidentemente descobre que as despesas foram maiores que sua renda. No âmbito da Igreja Católica, em particular, eles vão às barras dos tribunais, fazem uma confissão clara, abrem mão de tudo e pensam em começar de novo. Assim, os homens vão ficando confortavelmente deitados e, enquanto falam da decadência do homem, são incapazes de mexer um músculo para tentar se levantar. Há uma importante diferença entre as exigências respectivas que dois homens fazem à vida, quando o primeiro se satisfaz com um sucesso medíocre no qual todas as suas metas podem ser atingidas com facilidade, e o segundo, mesmo sofrível e malogrado, prefere mirar um pouco mais acima, embora não alto demais. Eu gostaria muito mais de ser o segundo, embora os orientais digam que “a grandeza não se aproxima do homem cujo olhar está sempre baixo; e os que olham sempre para cima estão se empobrecendo”. É digno de nota que quase nada ou mesmo nada exista escrito que valha a pena ser lembrado a respeito de como ganhar a vida; não basta uma informação sobre como ganhar a vida simplesmente com honestidade e honra, mas que tal ato seja atraente e glorioso; pois se ganhar a vida não for atraente e glorioso, não é a vida que se ganha. A julgar pela literatura existente sobre o assunto, é possível pensar que tal questão nunca soou entre as preocupações de um indivíduo solitário. Será que os homens estão por demais enojados com sua experiência e preferem se calar? A lição de valor que aprendemos com o dinheiro, e que o Autor do Universo tanto se esforçou para nos ensinar, essa nós tendemos a esquecer inteiramente. No que diz respeito aos meios de vida, é assombrosa a indiferença que todos os tipos de homens — os chamados reformistas, inclusive — lhe dedicam — quer eles os herdem, ganhem ou roubem. Acho que a sociedade nada fez por nós nesse particular, ou pelo menos ela desfez o que conseguiu fazer. O frio e a fome, para a minha natureza, são mais amigáveis que os métodos adotados e aconselhados pelos homens para espantá-los para longe. Na maior parte dos casos faz-se um uso inteiramente equivocado do adjetivo sábio. Como pode alguém ser sábio se não consegue viver melhor que outros homens? Bastará ser mais matreiro e intelectualmente sutil? A Sabedoria está presente num trabalho enfadonho? Ou dará sempre a lição de seu próprio exemplo? Haverá uma sabedoria além daquela aplicada à vida? Ou será ela apenas o moleiro que mói a lógica mais requintada? É pertinente perguntar se Platão ganhava sua vida melhor ou com mais sucesso que seus contemporâneos — ou teria ele como outros sucumbido às dificuldades da vida? Terá sido apenas pela indiferença ou pela empáfia que ele aparentemente prevaleceu sobre alguns deles? Ou será que sua vida foi mais fácil pelo fato de uma tia sua ter se lembrado de incluí-lo entre seus herdeiros? As maneiras pelas quais se sustenta a maioria dos homens, isto é, a sua vida, nada mais são do que expedientes circunstanciais, uma fuga do verdadeiro sentido da vida; isso ocorre principalmente porque os homens não conhecem nada melhor, mas em parte porque também não querem nada melhor. Henry Thoreau
Enviado por Germino da Terra em 06/09/2012
Alterado em 06/09/2012 Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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