7 de janeiro de 2011
Sobre internet, anonimato e irresponsabilidade, por Zygmunt Bauman em Isto não é um diário — Jorge Zahar Editor
Resenhando no New York Times de 3 de janeiro uma coletânea de estudos organizada por Saul Levmore e Martha Nussbaum, intitulada The Offensive Internet, Stanley Fish segue a linha assumida pela maioria dos colaboradores, inserindo o tema do estudo resenhado — a questão da calúnia anônima permitida pela internet versus as exigências de sua proibição ou limitação legal — no arcabouço cognitivo da “liberdade de expressão”. Seria possível tomar partido contra o glorioso legado da Primeira Emenda, o conhecido pressuposto de que a liberdade de expressão deve ser protegida a qualquer custo, e exigir que a verbalização de certas opiniões se torne ilegal e passível de punição? Em 1995, John Paul Stevens, ministro da Suprema Corte, descartou as consequências potencialmente mórbidas do anonimato da informação, argumentando com base no mesmo arcabouço e no mesmo espírito: ele insistiu em que “o valor inerente da ... expressão em termos de sua capacidade de informar o público não depende da identidade de sua fonte, seja ela empresa, associação, sindicato ou indivíduo”. Jürgen Habermas, a propósito e corretamente, discordaria dessa interpretação um tanto ampliada e distorcida da Primeira Emenda: sua própria teoria da comunicação (ideal, sem distorção) baseava-se no pressuposto (confirmado do ponto de vista empírico) de que, ao se oferecer, perceber, absorver e avaliar uma mensagem, a verdade é exatamente o oposto: é mais comum, rotineiro e trivial que nossa tendência seja a de julgar o valor da informação pela qualidade da fonte. É por isso que, como se queixava Habermas, a comunicação tende, como regra, a ser “distorcida”: quem diz importa e conta mais que aquilo que foi dito. O valor da informação é reforçado ou reduzido nem tanto por seu conteúdo quanto pela autoridade de seu autor ou mensageiro. A sequência inevitável é que, caso a informação chegue sem o nome da fonte, as pessoas se sentirão perdidas e incapazes de assumir uma posição; no que se refere à comunicação distorcida, identificar a fonte é um ato legítimo, permitindo que se tome a decisão de confiar na mensagem ou ignorá-la — e toda ou quase toda comunicação em nosso tipo de sociedade pertence a essa categoria de “distorcida”. (Para se livrar dessa distorção, a comunicação exigiria uma igualdade genuína entre os participantes, uma igualdade não apenas em torno da mesa de debates, mas na vida “real”, off-line ou longe da sala de debates. Essa condição exigiria nada menos que explodir e aplainar a hierarquia de autoridade dos participantes; não bastaria dizer às pessoas que a informação precisa ser avaliada por seus próprios méritos ou vícios, e não pelos do autor, para que essa condição fosse atingida, e é muito provável que as pessoas rejeitassem esse conselho ou instrução como contrafactual, uma evidente caricatura das duras realidades da vida. Indiretamente, e numa linguagem diferente da de Habermas, Stanley Fish o admite: “Suponhamos que eu receba um bilhete anônimo afirmando que fui traído por um amigo. Não saberei como considerá-lo — trote cruel, calúnia, aviso, teste? Mas se eu conseguir identificar o autor do bilhete — amigo, inimigo ou fofoqueiro reconhecido —, poderei avaliar seu significado porque saberei o tipo de pessoa que o escreveu e quais possam ter sido os seus motivos.”) Nesse caso, contudo, todas essas sugestões e restrições são apenas um lado dos problemas (como assinalei, colocando-as entre aspas); o que realmente importa é se a questão do anonimato de opinião propagada e permitida pela internet precisa mesmo ser enquadrada, julgada e resolvida no arcabouço da liberdade de expressão; ou se sua verdadeira importância social, que precisa tornar-se e contínua a ser o foco da preocupação pública, é sua relação com o problema da responsabilidade de uma pessoa por suas ações e suas consequências. O verdadeiro adversário do anonimato no estilo da internet não é o princípio da liberdade de expressão, mas o da responsabilidade: o anonimato ao estilo da internet é, antes e acima de tudo, o mais importante do ponto de vista social, uma permissão oficialmente endossada para a irresponsabilidade e uma aula pública de como praticá-la — tanto on-line quanto off-line —, uma mosca antissocial extremamente grande e venenosa, à qual se permite roubar um enorme tonel de unguento apresentado como promotor da causa da sociabilidade e da socialização, e em tese a ela dedicado. Quanto mais potencialmente mortal for uma arma, mais difícil será obter permissão para possuí-la e portá-la (embora não devesse haver permissão de uso do tipo cheque em branco, fosse ela fornecida livremente ou com restrições). A internet, porém (com o Velho Oeste e a selva mítica), é objeto de uma isenção total a essa regra tão amplamente considerada indispensável à vida civilizada. Calúnia, injúria, difamação, insulto, ofensa, aleivosia e infâmia estão entre as armas mais mortais: para as pessoas, mas também para o tecido social. Sua posse e seu uso, em particular o uso indiscriminado, é um crime na vida off-line (em geral chamada de “vida real”, embora esteja longe de ser claro qual delas, a on-line ou a off-line, ganharia a competição pelo título de realidade); mas não foi reconhecida e proclamada como crime no mundo on-line. Só se pode tentar adivinhar qual dos dois mundos, on-line ou off-line, vai ser assimilado pelo outro e ajustar suas regras aos padrões deste; qual deles acabará cedendo à pressão e qual vai pressionar com mais intensidade para que o outro se renda. No momento, porém, o mundo on-line tem uma vantagem considerável sobre o concorrente; nele, em oposição ao off-line, todo mundo pode ser um 007: todos têm licença para matar. Melhor ainda, todos podem matar sem sequer dar-se ao trabalho de solicitar uma licença. É impossível negar o poder de sedução de uma vantagem como essa. E lembrem-se de que cada tipo de sedução faz uma pré-seleção de seus seduzidos. Uma “irresponsabilidade flutuante” (ou seja, uma responsabilidade destacada de seus portadores por agentes aliviados de sua responsabilidade) significa, como Hannah Arendt advertiu muito tempo atrás, a “responsabilidade de ninguém”. Ela chegou a essa conclusão ao observar de perto as práticas repulsivas da burocracia — na época era suspeita de constituir uma assustadora ameaça, exigindo da civilização e da humanidade que encontrassem formas de enfrentá-la. Hannah Arendt não viveu o suficiente para testemunhar a difusão dessa invenção e dessa especialidade para outros lugares que a própria burocracia — confinada às suas aplicações tecnicamente primitivas, de indústria caseira — nem sonhava em atingir. Zygmunt Bauman
Enviado por Germino da Terra em 23/08/2012
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