A literatura e o dinheiro, de Gonçalo M. Tavares, em O senhor Valéry e a lógica
O senhor Valéry levava sempre debaixo do braço um livro envolvido por um elástico e por uma capa de plástico. Além de ler o livro, utilizava-o como carteira, para guardar as notas. O senhor Valéry explicava: — Nunca gostei de separar a literatura do dinheiro. O senhor Valéry organizava-se, pois, da seguinte maneira (eram estas as suas regras). Nunca colocava mais do que uma nota entre duas páginas do livro. Nas primeiras páginas colocava as notas menos valiosas, e nas últimas as mais valiosas. E em vez de usar um marcador para assinalar a página em que se encontrava na leitura do livro, ele colocava, nessa página, as moedas, fazendo com que o livro, de certo modo, engordasse. Na última página, o senhor Valéry deixava sempre o seu bilhete de identidade. Era este o desenho que o senhor Valéry fazia para explicar a sua relação com a literatura e com o dinheiro
E cada vez que fazia o desenho, repetia:
— Nunca gostei de separar a literatura do dinheiro. O procedimento do senhor Valéry, tanto na leitura como num ato comercial, seguia, depois, etapas rigorosas e inalteráveis. Em primeiro lugar retirava cuidadosamente o livro da capa de plástico que o rodeava. Depois, ainda com muito cuidado, para nenhuma moeda ou nota cair, retirava o elástico que envolvia o livro. O terceiro passo era abrir o livro na página em que havia parado na leitura, o que era fácil, uma vez que era ali que se encontravam todas as moedas de que o senhor Valéry dispunha no momento. Quer estivesse envolvido numa transação comercial, quer se aprestasse a recomeçar a leitura, o senhor Valéry despejava primeiro as moedas sobre a mão segurando com cuidado o livro para nenhuma nota cair. Depois, se fosse necessário efetuar um pagamento, o senhor Valéry procurava as notas adequadas, folheando o livro como alguém que procura uma determinada frase já assinalada. No caso de abrir o livro para o ler, o senhor Valéry, depois de despejar as moedas sobre a mão, empilhava-as em cima da mesa à sua frente, começando então a dar atenção às letras. Quando na leitura o senhor Valéry alcançava páginas com uma nota, passava de imediato esse dinheiro para umas páginas à frente. Ao contrário, quando estava prestes a terminar um livro, todas as notas, mesmo as valiosas, eram passadas para trás da página em que se encontrava, ou seja, para trás das moedas, o que lhe causava sempre uma sensação estranha. Quem passava pelo senhor Valéry e o via, em frente à mesa de um café, segurando com muita força, e com as duas mãos, os dois lados do livro, nunca conseguia decidir se os braços tensos do senhor Valéry mostravam avareza mesquinha ou um amor profundo à literatura. Gonçalo M. Tavares
Enviado por Germino da Terra em 20/06/2012
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