A menina, as aves e o sangue, de Mia Couto em Contos do nascer da terra
Aconteceu, certa vez, uma menina ,a quem o coração batia só de quando em enquantos. A mãe sabia que o sangue estava parado pelo roxo dos lábios, palidez nas unhas. Se o coração estancava por demasia de tempo a menina começava a esfriar e se cansava muito. A mãe, então, se afligia: rola o dedo e deixava a unha intacta. Até que o peito da filha voltava a dar sinal: — “Mãe, venha ouvir: está a bater!” A mãe acorria, debruçando a orelha sobre o peito estreito que soletrava pulsação. E pareciam, as duas, presenciando pingo de água em pleno deserto. Depois, o sangue dela voltava a calar, resina empurrando a arrastosa vida. Até que, certa noite, a mulher ganhou para o susto. Foi quando ela escutou os pássaros. Sentou na cama: não eram só piares, chilreinações. Eram rumores de asas, brancos drapejos de plumas. A mãe se ergueu, pé descalço pelo corredor. Foi ao quarto da menina e joelhou-se junto ao leito. Sentiu a transpiração, reconheceu o seu próprio cheiro. Quando lhe ia tocar na fronte a menina despertou: — “Mãe, que bom, me acordou! Eu estava sonhar pássaros”. A mãe sortiu-se de medo, aconchegou o lençol como se protegesse a filha de uma maldição. Ao tocar no lençol uma pena se desprendeu e subiu, levinha, volteando pelo ar. A menina suspirou e a pluma, algodão em asa, de novo se ergueu, rodopiando por alturas do tecto. A mãe tentou apanhar a errante plumagem. Em vão, a pena saiu voando pela janela. A senhora ficou espreitando a noite, na ilusão de escutar a voz de um pássaro. Depois, retirou-se, adentrando-se na solidão do seu quarto. Dos pássaros selou-se segredo, só entre as duas. Mas o assunto do coração suspenso foi sendo divulgado e chegaram ao subúrbio curiosos da cidade. Vieram estudiosos a solicitar o caso daquele acaso. Até médicos questionavam a mãe: — “Angina de peito ela teve? — “Sim, doutor: sempre ela foi anjinha de peito”. Precisar de ajuda? Que não, doutor, essa menina é feita assim mesmo, levinha como ar em pulmão de ave. Mas o médico insiste, promete mundos sem fundos. Que a fenomenosa miúda podia ficar em memória da ciência. Mas a senhora mãe deveria participar. Era preciso tudo controlar: batimentos, calores, suspiros. Tarefa para mãe a tempo inteiro, se pediam obséquios. — “Se eu sei contar, doutor? Só os padre-nossos e aves que nos mandam rezar na confissão”. Por uns dias ela ainda segurou o pulso frio da menina. Quase desejava que o peito não desse resposta. Afinal, quando o coração lhe pulsava a menina esquentava-se, a ponto de rubra febre. A filha resistia, com doçura: queria era sair, brincar. — “Desde dois dias, mãe. Desde isso que não bate”. A senhora desistiu das medições. Que a deixassem só, ela com ela. E, de noite, os pássaros enchendo o escuro. A mãe expulsou os exteriores mirones. Fossem todos, levassem seus títulos, promessas, indaguações. Com o tempo, porém, cada vez menos o coração se fazia frequente. Quase deixou de dar sinais à vida. Até que essa imobilidade se prolongou por consecutivas demoras. A menina falecera? Não se vislumbravam sinais dessa derradeiragem. Pois ela seguia praticando vivências, brincando, sempre cansadinha, resfriorenta. Uma só diferença se contava. Já à noite a mãe não escutava os piares. — “Agora não sonha, filha? — “Ai mãe, está tão escuro no meu sonho!” Só então a mãe arrepiou decisão e foi à cidade: — “Doutor, lhe respeito a permissão: queria saber a saúde de minha única. É seu peito... nunca mais deu sinal”. O médico corrigiu os óculos como se entendesse rectificar a própria visão. Clareou a voz, para melhor se autorizar. E disse: — “Senhora, vou dizer. a sua menina já morreu. — “Morta, a minha menina? Mas, assim...? — “Esta é sua maneira de estar morta”. A senhora escutou, mãos juntas, na educação do colo. Anuindo com o queixo, ia esbugolhando o médico. Todo seu corpo dizia sim, mas ela, dentro do seu centro, duvidava. Pode-se morrer assim com tanta leveza, que nem se nota a retirada da vida? E o médico, lhe amparando, já na porta: — “Não se entristonhe, a morte é o fim sem finalidade”. A mãe regressou a casa e encontrou a filha entoando danças, cantarolando canções que nem existem. Se chegou a ela, tocou-lhe como se a miúda inexistisse. A sua pele não desprendia calor. — “Então, minha querida não escutou nada?” Ela negou. A mãe percorreu o quarto, vasculhou recantos. Buscava uma pena, o sinal de um pássaro. Mas nada não encontrou. E assim, ficou sendo, então e adiante. Cada vez mais fria, a moça brinca, se aquece na torreira do sol. Quando acorda, manhã alta, encontra flores que a mãe depositou ao pé da cama. Ao fim da tarde, as duas, mãe e filha, passeiam pela praça e os velhos descobrem a cabeça em sinal de respeito. E o caso se vai seguindo, estória sem história. Uma única, silenciosa, sombra se instalou: de noite, a mãe deixou de dormir. Horas a fio sua cabeça anda em serviço de escutar, a ver se regressam as vozearias das aves. Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 23/05/2012
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