Ana C., por Marcílio Godoi, na revista Língua Portuguesa — ano 7, no 79
O cheiro forte do mimeógrafo cuspindo cópias marginais de poesia inebriava Ana, 19 anos, que trazia (e traduzia) Emily Dickinson e Sylvia Plath na bolsa de couro a tiracolo. Estamos na Faculdade de Letras da PUC, Rio de Janeiro, anos 70. E como era difícil separar, no que saltava azul-arroxeado para o grampeador, o ficcional do autobiográfico, a prosa da poesia, o destrutivo do construtivo, o político do poético, o original da cópia, a carta do diário íntimo da autora que recém-desembarcara de uma temporada em Londres, cheia de olhos para o mundo. Depois, aos 31, cheia desse mundo e de seus olhos vazados, matou-se. Jogou-se como papel picado pela fresta da janela, na cultuada morte dos ídolos daquele tempo, deixando fragmentos que até hoje os críticos se ocupam em colar, cuidadosos, recuperando pouco a pouco o rosto, a face misteriosa de sua escrita fascinante, faiscante. Ana Cristina Cesar se apresentava como Ana C., “mulher do século 19 disfarçada de século 20”. Tentava entender a esquerda, a poesia pós-Bandeira-Drummond no desbunde pós-Tropicália, e assim viveu o paradoxo artístico-acadêmico dos poetas críticos. Ana vai aos poucos perdendo o rótulo de poeta suicida e pouco elaborada, enquanto vão se fixando nela as palavras, o lugar calculadamente do êthos de sua poesia.
Marcílio Godoi é arquiteto e jornalista,
autor do Pequeno Dicionário Ilustrado de Palavras Inventadas (Sagui, 2007) Marcílio Godoi
Enviado por Germino da Terra em 20/05/2012
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