Anacleto Morones (parte II), de Juan Rulfo, em Chão em chamas — Record
E fui outra vez até o curral cortar goiaba. E lá fiz toda hora que pude, enquanto esperava baixar o mau humor daquela mulher. Quando regressei ela já tinha ido embora. — Ela se foi? — Sim, ela foi-se embora. Você fez ela chorar. — Eu só queria conversar com ela, só para deixar o tempo passar. Vocês repararam em como demora para chover? Lá em Amula já deve ter chovido, não é? — Pois é, anteontem caiu um aguaceiro. — Não tem dúvida que aquele é um bom lugar. Chove bem e vive-se bem. Garanto que aqui nem as nuvens são parecidas com as de lá. Rogaciano ainda é o prefeito? — Ainda é. — Homem bom, esse Rogaciano. — Não é não. É um malvado. — Vai ver vocês têm razão. E o que me contam de Edelmiro, ainda está com a botica fechada? — Edelmiro morreu. E fez muito bem, embora pareça errado dizer isso; mas era outro malvado. Foi um dos que despejaram infâmias em cima do Menino Anacleto. Acusou-o de ajoureiro e de bruxo e de engana-bobos. Andou por todo lado dizendo tudo isso. Mas as pessoas não deram confiança e Deus o castigou. Morreu roxo de raiva, como aqueles passarinhos que não se deixam contrariar e preferem morrer. — Esperemos em Deus que ele esteja nos infernos. — E que os diabos não se cansem de botar lenha nele. — E também em Lirio López, o juiz que ficou de lado e mandou o Santo Menino para a cadeia. Agora quem falava eram elas. Deixei-as dizer tudo que quiseram. Enquanto não se metessem comigo, tudo bem. Mas de repente tiveram a ideia de me perguntar: — Você quer ir com a gente? — Para onde? — Para Amula. Foi por isso que a gente veio. Para levar você. Por um momento senti vontades de voltar para o curral. De sair pela porta que dá ao morro e sumir. Velhas infelizes! — E que diachos eu vou fazer em Amula? — Queremos que você acompanhe a gente em nossas preces. Nós, Congregadas do Menino Anacleto, abrimos uma novena de rezações para pedir que canonizem ele. Você é genro dele e precisamos que seja nossa testemunha. O senhor padre encarregou a gente de levar alguém que tivesse conhecido ele de perto e de tempos atrás, antes que ficasse famoso por causa dos seus milagres. E ninguém melhor que você, que viveu ao seu lado e pode dizer melhor que ninguém as obras de misericórdia que andou fazendo. É para isso que precisamos de você, para que nos acompanhe nesta campanha. Velhas endemoniadas! Tivessem dito antes. — Não posso ir — disse a elas. — Não tenho quem cuide da casa. — Pois ficam duas moças aqui, já pensamos nisso. Além do mais, existe a sua mulher. — Eu não tenho mais mulher. — Logo a sua? A filha do Menino Anacleto? — Já se foi. Botei ela para fora. — Não pode ser, Lucas Lucatero. A coitadinha deve estar sofrendo. Boa do jeito que era. E jovenzinha. E bonita. Para onde você foi mandá-la, Lucas? A gente se conforta se você pelo menos tiver enfiado a coitada no convento das Arrependidas. — Não enfiei ela em lugar nenhum. Botei para fora. E tenho certeza de que ela não está com as Arrependidas; ela gostava mesmo era do bulício e da preguiça. Deve andar por aí, esfrangalhando calças. — A gente não acredita em você, Lucas, nada de nada. Vai ver ela está aqui mesmo, trancada em algum quarto dessa casa, rezando suas rezas. Você sempre foi muito mentiroso e até inventador de casos. Lembre-se, Lucas, das coitadas das filhas de Germelindo, que tiveram até que ir para El Grullo porque o pessoal assoviava para elas a canção que falava das “putinhas” cada vez que punham a cara na rua, e tudo isso só por causa dos fuxicos que você inventou? Não dá para acreditar em nada do que vem de você, Lucas Lucatero. — Então nem preciso ir a Amula. — Você faz a confissão primeiro e isso ajeita tudo. Desde quando você não se confessa? — Ih!, já lá se vão uns quinze anos. Desde que os cristeiros iam me fuzilar. Puseram uma carabina em minhas costas e me fizeram ajoelhar na frente do padre e ali eu contei até o que não tinha feito. Então me confessei por antecipação. — Se não existisse essa coisa de você ser o genro do Menino Santo, não viríamos atrás de você, quanto mais pedir coisa alguma. Você foi sempre muito endiabrado, Lucas Lucatero. — Pois não por acaso fui ajudante de Anacleto Morones. Ele sim, era o demônio em pessoa. — Não blasfeme. — É que vocês não conheceram ele. — Conhecemos como santo. — Mas não como santeiro. — O que é que você está dizendo, Lucas? — É que disso vocês não sabem nada. É que antes de ser santo, ele vendia santinhos. Nos mercados. Nas portas das igrejas. Eu carregava o caixote. “E lá íamos nós dois, um atrás do outro, de aldeia em aldeia, de povoado em povoado. Ele na frente e eu carregando o caixote com as novenas de São Pantaleão, de Santo Ambrósio e de São Pascoal, que pesavam pelo menos três arrobas. “Um dia encontramos uns peregrinos. Anacleto estava ajoelhado em cima de um formigueiro, mostrando para mim como é que quando você morde a língua as formigas não mordem você. Então os peregrinos passaram. Viram aquilo. Pararam para ver aquela curiosidade. Perguntaram: ‘Como é que você consegue ficar em cima de um formigueiro sem que as formigas mordam você?’ “Então ele pôs os braços em cruz e começou a dizer que acabava de chegar de Roma, de onde trazia uma mensagem e era portador de uma lasca da Santa Cruz onde Cristo foi crucificado. “Eles o levantaram dali em seus braços. Foi levado em andor até Amula. E chegando lá, foi um Deus nos acuda; as pessoas se prostravam na frente dele e pedia milagres. “Esse foi o começo. E eu só ficando de boca aberta, vendo como ele engabelava o montão de peregrinos que ia vê-lo. — Você é um tremendo falastrão e exagera na blasfêmia. Quem era você antes de conhecê-lo? Um pastor de pocilga. Pocilgueiro. E ele fez de você um homem rico. Deu tudo que você tem. E nem assim você é capaz de falar bem dele. Mal-agradecido. — Até aí eu vou, agradeço a ele por ter matado a minha fome, mas isso não impede que fosse o diabo vivo. E continua sendo, esteja onde estiver. — Ele está no céu. Entre os anjos. Está lá, por mais que isso incomode você. — Eu sabia que ele, estava é na cadeia. — Isso foi há muito tempo. Fugiu. Desapareceu sem deixar rastro. Agora está no céu, corpo e alma presentes. E de lá, nos abençoa. Meninas! Ajoelhem-se! Rezemos o “Penitentes somos, Senhor”, para que o Menino Santo interceda por nós. E aquelas velhas se ajoelharam, beijando a cada Pai Nosso o escapulário onde estava bordado o retrato de Anacleto Morones. Eram três da tarde. Aproveitei esse tempinho para me meter na cozinha e comer uns tacos de feijão. Quando saí, só tinham sobrado cinco mulheres. — O que foi feito das outras? — perguntei. E Pancha, movendo os quatro pêlos que tinha em seus bigodes, disse: — Foram embora. Não querem saber de nada com você. — É melhor assim. Entre menos burros, mais espigas. Querem mais refresco de goiaba? Uma delas, a Filomena, que tinha estado calada o tempo inteiro e que de maldade era chamada de a M ta, debruçou-se em cima de um de meus floreiros e. metendo o dedo na boca, botou para fora todo o refresco de goiaba que tinha tomado, misturado com pedaços de torresmo e de fruta. — Eu não quero nem a sua água, blasfemo. Não quero nada que venha de você. E pôs em cima da cadeira o ovo que eu tinha dado de presente: — Nem quero seu ovo! É melhor eu ir embora. Agora, só restavam quatro. — Eu também tenho vontade de vomitar — me disse a Pancha. — Mas agúento. Temos de levar você até Amula, do jeito que for. “Você é a única pessoa que pode dar fé da santidade do Menino Santo. Ele haverá de amolecer a sua alma. Já pusemos sua imagem na igreja e não seria justo botá-la na rua por sua culpa. — Pois procurem outro. Eu não quero acender vela nesse enterro. — Você foi quase um filho para ele. E herdou o fruto da sua santidade. Ele pôs os olhos em você para perpetuar-se. Deu-lhe sua filha. — Pois é, mas quando deu ela já estava perpetuada. — Valha-me Deus, as coisas que você diz, Lucas Lucatero! — Mas foi assim mesmo, ele me deu a filha já carregada de uns quatro meses pelo menos. — Mas com odor de santidade. — Com odor a pestilência. Digo isso porque ela mostrava a barriga a qualquer um que parasse na frente dela, só para que vissem que era de carne. Mostrava a pança crescida, arroxeada por causa do inchaço do filho que estava lá dentro. E eles riam. Achavam graça. Era uma sem-vergonha. Essa era a filha de Anacleto Morones. — Ímpio. Não é de você dizer essas coisas. Vamos arrumar um escapulário para você pôr o demônio para fora. Ela se foi com um deles. Que dizia que gostava dela. Disse apenas: “Vai ser, eu sou o pai do seu filho.” E ela foi-se embora com ele. — Era fruto do Menino Santo. Uma menina. E você a conseguiu de presente. Você foi o dono dessa riqueza nascida da santidade. — Baboseiras! — O quê? — Dentro da filha de Anacleto Morones o que havia era o filho de Anacleto Morones. — Você inventou isso para botar coisas ruins em cima dele. Você foi sempre um invencionista. — Ah, é? E o que vocês me dizem das outras? Ele deixou esta parte do mundo sem nenhuma virgem, sempre se valendo de que estava pedindo que uma donzela velasse o seu sono. — Fazia isso por pureza. Para não se sujar com o pecado. Queria rodear-se de inocência para não manchar a alma. — Vocês dizem isso porque não foram chamadas. — Eu fui — disse uma que era conhecida por Melquíades. — Eu velei o sono dele. — E o que aconteceu? — Nada. Só suas mãos milagrosas que me abrigaram naquela hora em que a gente sente a chegada do frio. E eu agradeci o calor de seu corpo. E nada mais. — É que você já era velha. Ele gostava das novinhas. Que os ossinhos quebrassem. Ouvir os ossos quebrando como se fossem casca de amendoim. — Você é um ateu maldito, Lucas Lucatero. Um dos piores. Agora quem estava falando era a Órfã, a do eterno choramingo. A velha mais velha de todas. Tinha lágrimas nos olhos e suas mãos tremiam: — Eu sou órfã e ele me aliviou a orfandade; tomei a encontrar nele meu pai e minha mãe. Passou a noite me acariciando para que minhas penas fossem embora. E as lágrimas escorriam. — Então, você não tem por que chorar — disse a ela. — É que meus pais morreram. E me deixaram só. Órfã, nessa idade em que é tão difícil encontrar apoio. A única noite feliz foi a que passei com o Menino Anacleto, entre seus braços consoladores. E agora você fala mal dele. — Era um santo. — Bom de toda bondade. — Nós esperávamos que você prosseguisse a obra dele. Você herdou tudo dele. — Pois o que ele me deixou de herança foi uma canastra de vícios dos mil judas. Uma velha louca. Não tão velha como vocês. Mas bem louca. A única coisa boa é que ela foi-se embora. Eu mesmo abri a porta. — Herege! Você inventa puras heresias! Naquela altura só restavam duas velhas. As outras tinham ido embora uma atrás da outra, me fazendo a cruz e recuando e com a promessa de voltar para os exorcismos. — Você não haverá de negar que o Menino Anacleto era milagroso — disse a filha de Anastasio. — Isso sim, você não pode negar. — Fazer filho não é nenhum milagre. E esse era o seu forte. — Ele curou meu marido da sífilis. — Não sabia que você tinha marido. Você não é filha do Anastasio barbeiro? A filha de Tacho, pelo que sei, é solteira. — Sou solteira, mas tenho marido. Uma coisa é ser senhorita e outra é ser solteira. Você sabe muito bem. E eu não sou senhorita, mas sou solteira. — Fazer isso na sua idade, Micaela. — Tive de fazer. O que eu ganhava vivendo como senhorita? Sou mulher. E a gente nasce para dar o que dão para a gente. — Você fala com as mesmas palavras de Anacleto Morones. — Sim. Ele me aconselhou a fazer isso, para me curar do hepático. E me juntei com alguém. Isso da gente ter cinquenta anos e ser donzela é pecado. — Disse Anacleto Morones. — Sim, ele disse isso sim. Mas viemos aqui foi para fazer outra coisa. Fazer com que você volte conosco e certifique que ele era um santo. — E porque não eu? — Porque você não fez nenhum milagre. Ele curou meu marido. Eu sei disso. Por acaso você curou alguém da sífilis? — Não, nem sei o que é isso. — E uma coisa que nem gangrena. Ele ficou roxo e com o corpo cheio de manchas escuras. Nem dormia mais. Dizia que via tudo vermelho como se estivesse espiando a porta do inferno. E depois sentia ardores que faziam ele pular de dor. Então fomos ver o Menino Anacleto, e ele curou meu marido. Queimou ele com um junco ardendo e untou de saliva as feridas e, veja só, seus males acabaram. Agora me diz se isso não foi milagre. — Ele devia ter é sarampo. Eu também fui curado com saliva quando era pequeno. — Pois é o que eu estava dizendo antes. Você não passa de um ateu maldito. — E me resta o consolo de que Anacleto Morones era pior que eu. — Ele tratou você como se fosse um filho. E você ainda se atreve... Melhor não continuar ouvindo. Vou embora. Você fica, Pancha? — Fico mais um pouco. Darei sozinha a última batalha. Juan Rulfo
Enviado por Germino da Terra em 19/05/2012
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