![]() A varanda do frangipani (8º capítulo), de Mia Coutoquarto dia nos viventes
Nessa manhã, o polícia estava decidido a abrir clareira no labirinto. Se encaminhou, logo nas primeiras horas, para os lados da cozinha. Queria ver se entrava no armazém para confirmar o que ali se guardava. No caminho, encontrou Marta que ainda dormia. Só quando chegou perto é que reparou que ela estava nua. A enfermeira acordou estremunhada, o inspector revelou maneiras, desviando os olhos. Se desculpou, fazendo menção de se afastar para que ela ajeitasse compostura. Mas ela se deixou naquele despreparo e chamou o polícia:
— Fique, eu faço sempre assim... — Assim? — Durmo nua sobre a terra. Esperou que Marta se cobrisse. Mas ela se ergueu e, assim mesmo, sem se cobrir, anunciou disposição para conversar. Primeiro, justificou-se: não era por causa dos piolhos ou das ratazanas. Ela dormia fora porque aqueles quartos lhe davam uma tristeza de caixão sem cova. E ainda mais: dormia assim, despida, para receber da terra as secretas forças. — Até aqui, neste lugar abandonado, ainda sinto esse perfume que vem do fundo, lá das entranhas do mundo. — Talvez esse perfume venha de si e não da terra. — Quem sabe? Assim deitada, eu me sinto gémea do chão. Não é assim que dizem: a mulher faz da terra outra mulher? — Marta, eu quero perguntar-lhe uma coisa. Mas responda-me com verdade... — Alguma vez fiz outra coisa? — Eu... eu quero saber se você teve um caso com Vasto Excelêncio. — Um caso, dois casos, muitos casos... — Falo a sério, quero saber se vocês foram amantes. Ela pensou antes de responder. De repente, disse: Vou-me vestir, venho já. Foi atrás de um muro, demorou-se um breve instante. Reapareceu, apenas coberta com uma capulana. Vinha desavençada, modos bruscos, sem quentura nos panos: — Tenho que ir ver o velho Navaia. Ontem ele dormiu mal. Conhece, o velho-criança... — Sim, foi o primeiro a depor. — Ontem à noite ele quase chegou ao fim da sua historia. Ficou mesmo à beirinha de morrer. Tenho que ir vê-lo. — Espere, Marta, disse Izidine, barrando-lhe o caminho. Você tem que me responder. — Tenho!? E por que motivo tenho? — Porque eu... eu sou uma autoridade. — Você, aqui, não é autoridade nenhuma. Evitando o polícia, ela se afastou. Izidine encalçou-a, segurou-lhe num braço. Ela estacou junto dele tão próxima que ele se embaciava da sua respiração. Fez um esforço para se libertar. Em vão. O que sucedeu foi que a capulana tombou, deixando exposta a nudez da mulher. Ela segurou o pano e improvisou decência. — Marta, você tem que responder. Eu estou a trabalhar. — Saia do meu caminho. Eu também tenho que trabalhar. De novo, a enfermeira intentou escapar. Izidine apertou com mais força seu braço fugidio. O inspector muito se agravou: — Escute bem, sua enfermeirazinha de distrito. Eu não estou a avançar. Agora já sei porquê, é você que me anda a estragar a investigação... — Eu? — Sim, é você que anda a meter coisas na cabeça dos velhos, para eles inventaram disparates e me confundirem... — Não são disparates. Você é que não percebe o que eles lhe estão a dizer. — Não percebo? — Eles, todos eles, lhe estão a dizer coisas importantíssimas. Você é que não fala a língua deles. — Não falo? Se nós falámos sempre em português?! — Mas falam outra língua, outro português. E sabe porquê? Porque não confiam em si. Só lhe faço esta pergunta: por que é que você não deixa de ser polícia? — Acontece que sou polícia, estou aqui como isso. . . — Aqui não cabem polícias. — Mas para quê esta conversa estúpida? Eu estou aqui para descobrir quem matou... — É isso só que você quer: descobrir culpados. Mas aqui há gente. São velhos, estão no fim das suas vidas. Mas são pessoas, são o chão desse mundo que você pisa lá na cidade. — Qual chão, qual meio-chão! Eles sabem coisas que me estão a esconder. Sabe o que vou fazer? Vou prendê-los a todos. São todos culpados, todos cúmplices. — Boa, inspector. Assim é que se exerce autoridade. Parabéns, senhor polícia, vai ver que chega a Maputo e recebe logo uma promoção. Marta Gimo enrolou melhor a capulana em redor do corpo. Sentou-se num muro pequeno. O polícia embolsou as mãos e perfilou o olhar no oceano. Só então reparou como o dia estava bonito, água e céu rivalizando em azuis. Aquele sossego a perder de vista como que o acalmou. Suspirou fundo, sentou-se ao lado da enfermeira. Sua voz já estava ajoelhada: — Por favor ajude-me. Eu já não tenho tempo, não sei o que fazer. Marta mergulhou o rosto entre os braços. Resistiu assim, calada. O silêncio dela foi maior que a paciência do inspector. O homem insistiu: — Que quer que eu faça? Diga-me, você que sabe deste mundo... — Você quer condená-los! — Quero saber a verdade... — Quer condená-los, sabe porquê? Porque você tem medo deles! — Medo, eu? — Sim, medo. Estes velhos são o passado que você recalca no fundo da sua cabeça. Esses velhos lhe fazem lembrar de onde vem... De novo, uma fúria o tresvairou. A enfermeirinha queria discutir? Pois ele não era um desses polícias quaisqueres. Queria resposta? Pois teria a devida resposta. Quando se preparava a engatilhar um argumento, o agente reparou que Marta chorava. A fragilidade súbita daquela mulher o amoleceu. Pousou a mão sobre o seu ombro. Mas um sacão vigoroso afastou o gesto consolador. — Me deixe, seu... polícia! Marta afastou-se. O inspector ficou um tempo para se acertar. Depois, decidiu retomar o programa que estabelecera. Dirigiu-se ao armazém onde guardavam os produtos alimentícios. Estacou perante os mil fechos, ferrolhos e fechaduras. Quando se preparava para descadear a porta foi interrompido pela voz de Nhonhoso: — É melhor o senhor não entrar aí. — E porquê? O velho hesitou em responder. Depois, falou daquela maneira dele, nem pão nem queijo. Pronunciou-se em estranhas falas: — Esse armazém perdeu o chão. — Não tem chão? Nhonhoso confirmou, acenando um sim. Ali dentro havia apenas um vazio, um vazio dentro de um buraco. Aquele chão tinha sido engolido pela terra. — O senhor entra e é engolido também. Izidine Naíta desdenhou os conselhos do velho. Com um tiro estilhaçou a fechadura da porta principal. Cautelosamente, espreitou o interior, antes de entrar. Estava escuro e respirava-se uma humidade e um cheiro estranhos. De repente, um bater de asas chicoteou o silêncio e ecoou pelos fundos. Mais asas se juntaram e o rosto de Izidine foi severamente golpeado. Caiu quase sem nenhuns sentidos. A porta bateu com violência. Izidine já de nada se apercebeu. Mas eu, o fantasma dentro dele, senti as mãos de honhoso ajudando-o a levantar-se. E o polícia foi arrastado para junto da feiticeira. Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 19/03/2012
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