Despedida
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos quando anunciaste a despedida e eu que habitara lugares secretos e me embriagara com os teus gestos recolhi as palavras vagabundas como a tempestade que engole os barcos porque ama os pescadores Impossível separarmo-nos agora que gravaste o teu sabor sobre o súbito e infinito parto do tempo Por isso te toco no grão e na erva e na poeira da luz clara a minha mão reconhece a tua face de sal E quando o mundo suspira exausto e desfila entre mercados e ruas eu escuto sempre a voz que é tua e que dos lábios se desprende e se recolhe Ali onde se embriagam os corpos dos amantes o teu ventre aceitou a gota inicial e um novo habitante enroscou-se no segredo da tua carne Nesse lugar encostámos os nossos lábios à funda circulação do sangue porque me amavas eu acreditava ser todos os homens comandar o sentido das coisas afogar poentes despertar séculos à frente e desenterrar o céu para com ele cobrir os teus seios de neve Tinha tanto... Tinha tanto medo de solidão que nem espantava as moscas Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo se acendes ainda o minuto de cinza se despertas a ave magoada que se queda na árvore do meu sangue Pergunta-me se o vento não traz nada se o vento tudo arrasta se na quietude do lago repousaram a fúria e o tropel de mil cavalos Pergunta-me se te voltei a encontrar de todas as vezes que me detive junto das pontes enevoadas e se eras tu quem eu via na infinita dispersão do meu ser se eras tu que reunias pedaços do meu poema reconstruindo a folha rasgada na minha mão descrente Qualquer coisa pergunta-me qualquer coisa uma tolice um mistério indecifrável simplesmente para que eu saiba que queres ainda saber para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer Para ti Foi para ti que desfolhei a chuva para ti soltei o perfume da terra toquei no nada e para ti foi tudo Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram no minuto em que falhei o sabor do sempre Para ti dei voz às minhas mãos abri os gomos do tempo assaltei o mundo e pensei que tudo estava em nós nesse doce engano de tudo sermos donos sem nada termos simplesmente porque era de noite e não dormíamos eu descia em teu peito para me procurar e antes que a escuridão nos cingisse a cintura ficávamos nos olhos vivendo de um só olhar amando de uma só vida Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 05/01/2012
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