Instantes após acomodar-se para uma conferência do senhor Eliot, o senhor Swedenborg já está longe dali. Em vez de ouvir o que é dito, ele concentra-se em reflexões existenciais que se desenrolam em sua mente numa sequência de máximas, indagações e figuras geométricas. Quadrados, triângulos, círculos, pontos e retas se tornam assim os improváveis personagens desse devaneio excêntrico testemunhado apenas pelos leitores de “O senhor Swedenborg e as investigações geométricas”, do escritor português Gonçalo M. Tavares. O livro faz parte do projeto O Bairro, em que Tavares apresenta os idiossincráticos habitantes de uma vizinhança ficcional formada apenas por escritores, e sai agora no Brasil em companhia de outra obra da série: “O senhor Valéry e a lógica” (Casa da Palavra). Já são dez os volumes dedicados aos moradores dessa região em expansão constante, uma das mais conhecidas criações do autor, que chega aos 41 anos com livros publicados em 40 países e o reconhecimento de prêmios importantes como o José Saramago e o Portugal Telecom. Com outros 20 livros já editados no Brasil, Tavares lança as novas obras na Jornada de Literatura de Passo Fundo (RS), dia 24, e na XV Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, no início de setembro.
Embora não sejam muito evidentes as relações do senhor Swedenborg e do senhor Valéry com seus célebres homônimos — o místico sueco Emmanuel Swedenborg (1688-1772) e o poeta francês Paul Valéry (1871-1945) —, os dois livros têm como ponto comum a combinação de linguagens geralmente consideradas incompatíveis. Muitas vezes feita com ironia (a lógica impecável do senhor Valéry o leva a tomar atitudes pouco recomendáveis em sua vida prática), essa aproximação é no entanto levada a sério pelo escritor, para quem diferentes formas de pensar estão “naturalmente misturadas” na mente humana. Do Ceará, por onde faz uma viagem de duas semanas antes de seguir para o Rio Grande do Sul, Tavares conversou por telefone com O GLOBO sobre as relações entre literatura, matemática e filosofia, e sobre seu novo projeto ficcional, de construir histórias a partir de suas visitas a diferentes cidades. (Miguel Conde)
entrevista de Gonçalo M. Tavares ao PROSA & VERSO, em 13 de agosto de 2011
O GLOBO: Ao contarem histórias por meio de sucessões de máximas, silogismos, ou até de figuras geométricas, seus dois livros lançados agora aqui sugerem uma aproximação entre literatura, matemática e filosofia — muitas vezes, com efeitos cômicos. Você queria mesmo explorar os desencontros entre esses modos de pensar, ou pretendia antes indicar algo de comum entre eles?
GONÇALO M. TAVARES: Penso que todos os discursos e linguagens estão ligados naturalmente, nós é que artificialmente os separamos. A matemática sempre foi muito importante para mim, cheguei a pensar em me dedicar à matemática pura, pois era algo que me dava muito prazer. Mas os dois livros são também muito distintos. O senhor Valéry, de seu lado, é alguém que tenta resolver os problemas da vida por meio de raciocínios lógicos, aplicando princípios abstratos a questões cotidianas, como tomar um café, ter uma casa de férias, crescer. O que se vê então é que a racionalidade levada ao extremo tende ao absurdo, ou seja, que a irracionalidade não é mais do que o excesso de racionalidade. Já o senhor Swedenborg passa o tempo a assistir conferências e, durante elas, aproveita para conduzir suas investigações geométricas. O que me interessava ali era saber se a geometria podia contar histórias. As sequências geométricas de “Sr. Swedenborg” encenam pequenos dramas cujos personagens são triângulos, quadrados, circunferências, retas. A identificação com os personagens é geralmente considerada uma condição para que nos interessemos por um livro. Você espera que as pessoas sintam empatia por figuras geométricas? Nós em geral associamos a geometria a um mundo abstrato e frio, mas se olharmos com atenção, por exemplo, para um quadrado, pode ser que consigamos humanizá-lo. E a partir do momento em que o quadrado é visto como um ser vivo, as transformações de um quadrado passam a ser aquelas de um ser orgânico: tirar um lado de um quadrado já não é apenas remover uma linha, mas torna-se quase uma amputação de uma parte do corpo. Eu ficaria muita contente que as pessoas ao lerem o livro sentissem algo por um quadrado. O que acontece, espero, é que o traço transforma-se em escrita, os próprios desenhos se tornam algo a ser lido. Isso me interessa, o traço como algo com significado. O traço é a origem comum do desenho, da letra e do número. Podemos desenhar um quadrado, um “a”, um “b”, um “2 + 2”. Embora os livros tenham diferenças, como você destacou, há ainda outro ponto de aproximação entre eles, que é uma indagação constante sobre a verdade. Como você diria que a ficção está em relação à verdade? Essa é uma das perguntas mais duras de se responder. Diria logo de imediato que talvez isso que separa literatura de filosofia. Um dos centros da filosofia é a verdade. E a literatura procura através da ficção, que de certa maneira é uma mentira, não exatamente a verdade, mas o pensamento, a reflexão. Tenho algum medo da filosofia pura, porque ela pode fazer como que caiamos na tentação de encontrarmos uma verdade ou mesmo “a” verdade. A mim, pessoalmente, me agrada a literatura como um processo para encontrar várias verdades, muitas vezes paradoxais. Há uma riqueza do não terminado, do não definitivo, precisamente um prazer no percurso do pensamento. Ficaria muito desiludido se os leitores dos meus livros chegassem a uma verdade, uma conclusão. Acho muito importante que um livro esteja a refletir, e não a fazer definições. Definir é dizer a última palavra sobre um assunto, e acho que isso é muito perigoso, tanto literariamente quanto num nível político. Em contraponto à ideia de uma verdade única, portanto, a ficção aponta uma infinidade de possibilidades. Você diz que por meio da ficção a literatura procura a reflexão. Essa exige um distanciamento, uma postura crítica por parte do leitor, ou pelo contrário, se dá pelo próprio envolvimento com a história? Não gosto da história que é apenas um narrar. A literatura é mais do que uma história pura e simples. Ao mesmo tempo, não vejo uma distinção entre narrativa e reflexão. O próprio pensamento tem uma sequência, uma narrativa. Se pegarmos uma ideia e a desenvolvermos, se a pensarmos como um personagem, essa ideia-personagem vai se alterando: ela nasce, cresce, torna-se madura, tem um adversário — o contra-argumento —, há um combate com outras ideias, há vencedores e derrotados... Quer dizer, há um percurso narrativo. O que acharia interessante é que as pessoas vissem as ideias como narrativas, e as histórias também como ideias. Não temos muito essa tradição no Ocidente, de pensar através de histórias, mas no Oriente é muito típico que cursos de filosofias sejam dados por meio do contar de histórias. Para o ocidental, as ideias estão associadas a conceitos, mas muitas vezes os orientais apresentam os conceitos com narrativas. O que me agrada, pessoalmente, é que a certa altura as coisas estejam misturadas, como naturalmente são. Num trecho de “O senhor Swedenborg” os objetos são chamados de formas domesticadas, e faz-se menção a outro tipo de formas, mais estranhas, não domesticadas. Em que categoria a ficção poderia ser incluída? É possível estabelecer para ela uma utilidade, ou trata-se de algo mais indefinido? Talvez me agrade mais a ideia da ficção como objeto estranho, que a pessoa não sabe por onde pegar. Quando por exemplo temos uma cafeteira, a própria forma dela está a dizer onde nossa mão deve agarrá-la. O objeto está a dar indicações de como agir com ele. O objeto está a ensinar e a amestrar a própria pessoa, é uma forma domesticada, mas que também nos domestica. Eu talvez prefira então que a ficção seja um objeto estranho, com o qual não saibamos muito bem o que fazer. Diria que a ficção é um objeto de muitos usos. O que não me agradaria era uma ficção que tivesse uma única utilidade, como uma cafeteira. A ficção deve ser o contrário disso. Quando entra num livro de ficção, a pessoa não deve sentir-se totalmente em casa. Deve haver uma estranheza, que mais tarde será transformada em algo familiar. Essas são as experiências que valem a pena. Se o tempo todo encontrarmos só o que nos é familiar, estaremos sempre a andar em círculos. Você pensaria então a leitura de ficção como uma forma de contato com algo que é diferente de nós? Sim. Esse outro pode também ser uma pessoa, um lugar, um percurso. As viagens têm muito disso. Ao mudarmos de lugar, há uma estranheza que provoca um desajuste, uma mudança. O que acho fundamental é mantermos a curiosidade e termos uma espécie de faro para o que não entendemos. Precisamos, é claro, de um pouco de segurança. Se tivermos os dois pés fora do chão, temos uma sensação de queda. Mas se soubermos onde está um pé e não o outro, esse outro pé é a parte da curiosidade, que está a investigar algo que não conhece. Viagens como essa ao Brasil lhe oferecem essa experiência? Durante muito tempo tive uma certa aversão a viagens e encontros literários, mas gradualmente eles se tornaram uma coisa importante para mim. Tenho uma vida muito fechada, escrevo todos os dias, fico normalmente até as 5h sem ter contato quase com outras pessoas. Passo às vezes semanas e semanas muito fechado, portanto vejo esses encontros com uma possibilidade de encontrar pessoas, sair um pouco de mim próprio, não ficar num esconderijo interno. No encontro com leitores, entrevistas, debates, busco também esse prazer muito importante para mim, de pensar. Tento não dizer coisas que já pensei ou disse antes, assumir os outros como potências para mim mesmo, para que eu pense de outra maneira. (Miguel Conde)
depois do bairro de escritores, série sobre cidades
Enquanto vai povoando de escritores a vizinhança fictícia de sua série O Bairro, que no momento conta dez volumes e já foi descrita por ele como uma espécie de história da literatura sob a forma de ficção, o escritor português Gonçalo M. Tavares inicia um novo projeto ficcional, dessa vez de histórias baseadas em cidades. O marco inicial da nova série é o livro “Matteo perdeu o emprego” (Porto), publicado ano passado em Portugal, que combina ficção, ensaísmo e uma tabela periódica de cidades.
— É um projeto que me agrada, fazer histórias em redor de cidades. Antigamente as viagens eram para mim uma interrupção da escrita. Estava acostumado a escrever em Lisboa, no meu quarto.... A certa altura, porém, decidi incluir as viagens no meu percurso literário. Os textos escritos a partir das viagens são pequenos contos, diz, que muitas vezes têm como ponto de partida fotografias que ele mesmo tira: — Não é um trabalho de fotógrafo, mas de pesquisador, quase. Utilizo as imagens como uma espécie de diário, para me lembrar de lugares e episódios, e depois parto daí para transformar as imagens em narrativas. Assim já foram escritas histórias sobre a Cidade do México, Buenos Aires, e ainda cidades da Sérvia e da Croácia (“me interessam muito esses espaços que têm uma história forte de guerra, ou de mobilização política”, explica). A atual viagem pelo Brasil também deve render histórias, diz o escritor, que planeja reunir os contos hoje dispersos num único livro. (M.C.) Miguel Conde
Enviado por Germino da Terra em 03/10/2011
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |