retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Para o bem e para o mal, o verdadeiro escritor escreve sobre a realidade que sofreu e de que se alimentou, isto é, sobre a prática, embora, às vezes, pareça fazê-lo sobre histórias distantes no tempo e no espaço.
Ernesto Sabato, em O escritor e seus fantasmas

Escrevo o que sinto;
sinto o que escrevo.


 
Ger... Mina, encantada
 
A mamãe faz tudo o que meu pai quer e repete a ladainha: “Graças a Deus tenho o meu ho­mem em casa! Graças a Deus, Graças...”. E eu repito a minha, na minha cabeça: “Que diabo, que homem que diabo que nada!...”. O meu único irmão, mais velho q’eu, resmunga: “Nessa casa falta é uma mulhé... mu-lher de verdade!”. Moramos onde sempre moramos — um pouquinho mais pra lá, um pouquinho mais pra cá, mas sempre aqui nesse buraco.
  Todos os dias de tardi­nha a mamãe e meu pai vão aí, porai por essa estrada poeirada e me levam, eu mais meu irmão, ele emburrado. Vamos andando até quando a mamãe para e entra em uma casa onde todo mun­do canta muito e muito alto. Ali tem um homem que fala muito e alto, demais, e eu não gosto — aquilo me assusta. Ele repete o que a mamãe sempre diz em casa: “Graças! Graças! Graças!”, e eu não guento isso. Meu pai, ele entra na casa geminada alumiada de escarlate, é, é dumas ami­gas que lhes dão o q’eu pensava ser água amarga. Na porta as amigas me pegam, me agarram todo e eu não gosto. Meu pai ri muito, é muito amigo das moças, está sempre... a toda hora abraça e as beija. Nós dois, eu e meu irmão, ficamos ali entre as duas casas esperando nosso pai e a mamãe. A mamãe não deixa a gente entrar na “dele”; meu pai não deixa a gente entrar na “dela” — entre os dois sempre tem discussão sobre as casas. Mas, é verdade, das portas abertas nós enxergamos o nosso pai numa casa e a mamãe noutra, cada um com os seus amigos. De alguma maneira não nos sentimos tão sós, mesmo quando vem o frio do breu eu não me sinto largado: o meu irmão também não, eu acho. Vez e outra ele vai à porta da de nosso pai e recebe um copo daquela água e bebe um gole, vem e me oferece. Bico um tiquinho, arg, e faço careta; o meu irmão entorna o resto quase de golada.
  Era assim...
  Foi assim até um dia, eu já crescidinho, devia estar com o quê, uns 13-14 anos. É, eu estava entretido comigo mesmo no quarto quando da sala meu pai me chama: “Vem cá que quero te apresentar uma amiga. Vem cá, anda!”. Nesse dia o meu irmão já tinha saído, fora embora; a mamãe estava com os seus irmãos. Demoro um tanto e meu pai berra: “Germino!” Aí, ah, do quarto surjo à sala e meu pai... sabe, eu pensei que meu pai iria ter um treco, gente. Sua amiga exclama: Ai, que gracinha!!! Vem cá, meu bem”. Clareei o ambiente como quando surge um arco-íris depois de uma chuva torrencial e vem o sol. Todo improvisado, eu sei, mas ali es­tava eu — eu, enfim, sou euzinha —, rosto tooodo colorido, minissaia justa, turquesa, bustiê vermelho enchido com duas peras que catei no pomar, a mão direita na cintura e a canhota pra cima dedilhando o portal, unhas roxas, sim, e descalça pra mostrar os pés super-bem feitos, entende?; cabelo negro escorre sobre um desses negros olhos — des-lum-bran-te! —, e relampeio: “Oooííí, Ger... Mina, encantada”.
  O meu pai teve o treco.
  Daí não parei mais... Dali pra cá sou a Mi-na, Mina da Paiol Velho, ou, na intimidade, Mina do Velho. Nunca soube se “do Velho” é pelo meu pai ou pelo lugar. Não importa, vá.
Meu pai foi levado ao hospital Fundação. A mamãe reúne os seus irmãos mais o homem que berra “Graças!” e por três dias ficam no terreiro aqui de casa e oram por uma Graça.
  Mas nada, meu pai morre.
  O meu irmão aparece e diz pra mamãe que agora ela tem liberdade... Também digo, mas só que baixinho, só pra mim me digo que eu também estou liberta. Ãh? Isso, “alforriada”! Brigada.
  Fomos vivendo... eu e a mamãe.
  Voltando um tantinho, uns aninhos atrás: depois do trabalho horrendo que tínhamos, da lida na lavoura — minhas mãos ficavam um lixo! —, os meus amiguinhos iam jogar bola na várzea. Eu ia mas naturalmente não jogava, né, detesto coisa abrutalhada. Sempre saía briga, e aí sim, ah, aí eu ajudava a agarrar, a apartar, depois a consolar quem apanhava, assim, “Vem cá meu bem, vamos caminhar um bocado”, com a mão em seu ombro capinávamos mato adentro. Senta­dos à beira do rio eu limpo seu corpo cheio de dodói. Ah, aí brincamos de guerra dos botões, sabe como é? Não? É assim: par ou ímpar? Par?, eu cago tu limpa. Brincadeirinha. Cada vez que um perde o outro arranca um botão do um... E claro, vai indo e minha vestimenta cai; a do coleguinha, ele agora mais calmo, cai tam­bém. É assim. Aí acarinho seus machucados, o seu... tudo. Caímos n’água e brincamos a valer.
  Eu sei, depois ele contava tudinho aos outros, conta como brinco gostoso. Com o tempo todos querem brincar comigo no rio, no mato, em qualquer lugar querem brincar comigo. Assim, cada vez mais me aperfeiçoei nas tantas brincadeiras que inventei.
  Um dia — coisa horrorosa —, brincando com um amiguinho à margem do açude, pelados num calorão medonho, meu irmão vem e aparvalhado me chama. Vem e me vê caída de boca na cin­tura deste amiguinho. Vou com o meu irmão ao hospital ver a mamãe, o que haviam feito a ela: amputaram o seu pé direito. Ela é diabética e nem se trata. Tadinha, sua religião não credita nada a médico, tem seus próprios oradores. Sabe, somos do mato... À noite, em casa, o meu irmão — doido de cachaça — me sova toda e quebra tudo. Nunca mais esqueço aquela raiva. Nunca! Roguei praga pra ele e tudo. Muito muito, muita praga. Nunca soube se fui surrada por causa da mamãe ou do boquete que flagrou. De manhã, Graças!, ele vai embora de vez.
  Sempre gostei de brincar com meninos, sabe, mas tinha sempre um e outro que queria era brincar comigo, queria inverter a brincadeira. Ah, aí eu não gosto. É que nem hoje em dia, têm uns homens que querem é brincar... Você entende o que digo, num entende?
  Tem vez que vou à cidade e fico por ali à toa, perambulando, e os homens, aquele que eram meus amiguinhos — hoje são casados e até conheço suas esposas e tudo —, eles vão e me chamam pra brincar. Não, agora não, eu com 33 anos, idade de Cristo, já não falam mais “brincar”, não dizem nada por que sei o que é que querem. Entro no carro que vai e se embrenha num estreito qualquer. Eles me chupam toda e depois querem q’eu ponha neles. Ponho sim, ué, eles não põe em mim... Então eu cobro, e cobro alto, tipo assim... hoje, uns vinte real. Aí, sozinha ao léu, ai, eu choro. Ah, como os meus olhos orvalham!
  Só faço isso, assim, quando estou precisada de dinheiro; do contrário eu faço o que faço por prazer, é gosto. Tenho uma birosca, cê sabe, e ela me rende um dinheirinho que dá pra viver. Quando é um garotão? Ah, ensino tudinho — brinco de todas as brincadeiras —, ele se vê nas nuvens. Tô sempre cheirosinha!
  Sabe, eu quero mesmo é me apaixonar... Já... me afeiçoei, sim, mas... Quero montar casa com um homem bem bacana, delicado comigo. Têm uns que depois de me comerem bem — ou d’eu lhes pôr —, me batem, me enxovalham. Eu fico com ódio deles. Ódio! Sou mulher que gosta de apanhar não. Rogo praga pra eles. Vê o meu irmão — cê conhece —, com a praga que roguei tá até hoje aí, taí na sarjeta. É um bêbado de rua.
  A mamãe faleceu ano depois de meu pai morrer, de tristeza. Eu?, eu tinha uns quinze. É, faleceu, a santa. Desde então essa casa é só minha. Ainda hoje, vez e outra o meu irmão vem aqui, vem sempre encharcado de cachaça, numa lengalenga medonha. Faço ele banhar aquela carcaça catingosa, e enquanto se banha preparo sua janta. Come como porco, arrota, peida e chafurda na cama da mamãe — minha! — e ronca. Dia seguinte sai porta afora me xingando. Ai, que ódio!
  Como te disse, eu quero montar casa prum homi... ho-mem de verdade.
  Ainda não contei mas agora vou te contar: quando ainda criança duns onze anos, poraí, a mamãe tinha ido se encontrar com seus irmãos e meu irmão, pra variar, não estava em casa. Meu pai chega numa completa zoeira, cambaleante, tropicado mesmo, e me encontra no cochilo, nuinha deitada de bruços na cama da mamãe e dele. Ele me alisa toda. Acordo e percebo que gosto do acarinho, o que nunca... Passa a mão, os dedos entre minhas nádegas e eu gosto... me arreganho ainda mais. E então excitado ele tira a sua calça, muito excitado, muito zonzo, por trás me pega pelas an­cas e põe em mim, assim, vê, finge que tira mas põe — um monte de vez —, com força. Ai, isso dói, eu gemo “Dóóói”, mas ele não para. Aí, cansado, depois de jorrar bastante aqui dentro de mim, se espanta, me agarra pelo cabelo e vira meu rosto, olha nos meus olhos, arregala bem os seus e pergunta: “Ger... mino, é você?!”, cai pro lado — apaga.
  Desde pequena eu sou assim. Sou assim e não sabia: nesse dia, currada pelo meu pai, me descobri.

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 29/09/2011
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