retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


a história dos tiranos
de Gonçalo M. Tavares, in Histórias falsas, Casa da Palavra
Disse-o Santo Agostinho: “O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o sofre cada um.”
Dos filósofos, mais do que dos homens comuns, es­peramos um sofrimento distinto; sofrer com a calma e intensidade justas e atingir o sublime por essa via, é isto que se exige aos filósofos.
  Mas de ideias o mundo encheu-se rapidamente; en­quanto de santos, não. O seu aparecimento é bem mais lento: pedra preciosa.
De Zenão conheciam-se já as ideias: era o Negador das Coisas Evidentes. Dizia e repetia: o espaço não existe, o tempo não existe, o movimento não existe. O mundo inteiro tinha para Zenão o mesmo som: se nossos ouvi dos são incapazes de escutar a unidade não culpemos o Músico, o Grande Músico, não o julguemos inexistente, culpemos, sim, os ouvidos, a degradação terrestre dos órgãos que nos foram oferecidos.
  O problema foi então um: negar a realidade é negar também as hierarquias. É negar o escravo e negar o rei. Se, com este raciocínio, o primeiro pode entusiasmar-­se, o segundo, esse, pode não perdoar. Assim foi: o ti­rano ouviu e não gostou.
  Zenão negava o seu poder?
  É preciso que admita publicamente seu erro, ou tão que não mais o possa cometer, forma exata de afir­mar: então que morra!
  Porém, como o poeta, Zenão, perante o poder, tinha um lema: “Resistir muito, obedecer pouco.” Lema tan­to audaz quanto perigoso.
  É que aos tiranos podemos dividi-los em duas espécies: os que admiram mais a audácia do que a temem, e os outros.
  Em definitivo: o tirano que se cruzou com a vida de Zenão era dos outros.
  Do soberano chinês Xuan Zong conta-se que, admi­rador profundo do poeta Li Bai, lhe pagava as dívidas na taberna, temperava-lhe a comida, e chegava mesmo a limpar-lhe a boca com o seu próprio lenço real.
  Muitas outras vezes na História o poder se ajoelhou perante a filosofia e a arte. Umas por sincera devoção ao Belo, outras por medo: os poetas e os filósofos têm li­gações secretas com os deuses e alguns demônios assim se dizia e se diz ainda, entre os incapazes da construção de palavras ou ideias.
  No tirano de que se fala, todas as causas eram escravas de uma: o medo.
  Durante dois anos adocicou Zenão: ofereceu-lhe con­forto; dias com promessa de ouro por baixo. Pedia-lhe, sutilmente:
  — Abandona as ideias que põem em causa a realidade. 
Olha para o meu trono; sou o soberano. Sou aquele que manda na realidade.

  Suficiente filósofo para só ouvir o justo, Zenão pros­seguiu com seu método, mostrando a inexistência da matéria e o ridículo do alto.
  Na Ilíada, Homero relata a indignação da deusa Hera, face à vontade de Zeus em modificar o rumo da batalha, salvando Sarpédon, seu filho.
  Diz a deusa pela arte de Homero:
  “Um homem, que é mortal, há muito marcado pelo destino, e tu queres libertá-lo da morte nefasta?
Fá-lo, mas nós, os outros deuses, não te louvamos.”
Como a deusa Hera, Zenão obedecia a uma força maior: o destino.
  Atrever-se a mudar as suas ideias, o pensamento? A minha ideia é o meu destino pensava Zenão para si próprio —, modificá-lo não está ao alcance dos deuses, quanto mais dos homens. E concluía, convicto: sou o que penso; serei pois até o fim.
  Rapidamente, assim, o tirano se precipitou na tira­nia. Havia tentado o fruto: falhara. Restava agora o ou­tro lado: a espada. Mergulhado nos seus instintos pri­meiros qualquer tirano é como aquele sábio Zen (mas sem a sabedoria) que exclamava:
  — Se vocês disserem uma palavra dar-vos-ei trinta bas­tonadas de castigo. Se estiverem em silêncio dar-vos-ei as mesmas trinta bastonadas.
Preso Zenão, começou a tortura.
  O carrasco perguntava:
  — Se não existe o corpo, existe dor?
Zenão insistia: nada existe, a dor não existe.
Começava, então, o argumento da força.
  — Não adianta contra-argumentar dizia o carrasco —, é o momento de dar a palavra aos ferros.
Zenão agiu nesse momento como o porco do filó­sofo Pirro que, no meio de uma tempestade no mar, a bordo de um barco, era mostrado aos seus homens que tremiam de medo como exemplo de indiferença face ao perigo.
  — Se um animal é capaz de ser indiferente ao medo, o que se poderá chamar a um homem cujo corpo e dominado pelo terror? clamava Pirro para conven­cer os seus homens a agir com a única energia útil: a coragem.
Corajoso como os que são por essa qualidade quase Imortais, Zenão via com indiferença os ferros afunda­rem-se na carne, torcerem-na, arrancarem pedaços, queimarem outros.
  Nos intervalos dizia: a dor não existe.
  E acrescentava, provocador: o rei não existe.
Cristo, séculos mais tarde, mostrou-o aos homens: a resistência da carne é bem menor do que aquela que a História deseja. Torturado até o limite, Zenão acabou por morrer.
  O que se disse de um povo poderia dizer-se assim de Zenão: a que ele deve ter sofrido para conseguir ser tão sábio.
  Pelas ideias, durante a vida, tornara-se filósofo. Pela resistência à dor, próximo da morte, tornara-se um quase-deus; um sábio.
  Antes de terminar, uma última nota, que não se con­funda: esta não é a biografia de Zenão, mas a biografia do tirano responsável pela sua tortura e, por fim, pela sua morte. O nome? Que importa? Todos os tiranos têm o mesmo nome.
 
Gonçalo M. Tavares
Enviado por Germino da Terra em 22/09/2011
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras