retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Meu Diário
31/07/2011 18h33
escritura


No acaso é quando adormeço ao entardecer; desperto pouco depois. Breu. Acendo a luz do abajur e vejo as paredes imundas do quarto. Lá fora a cadela uiva.



Bocejo balbucio e olho a parede que há tempos fora alva, e, se pudesse, eu lhe daria as costas. Costas a tudo imundo!



Dias seguem e a pinto de creme, pinto a parede de creme com meus olhos invisíveis que veem. Pintei as paredes de fora de creme; as de dentro, de branco. Rabisco miúdo marrom que emoldura. Rabisco moldura. Numa única parede testo textura. Fica ruim, não. Colori sorriso e pincelei a porteira de escuro verde brilhante, e, sei, engabelo meu incômodo, assim lhe ponho um trinco.



Na grama, desvio olhos e minhas mãos tesas se enfiam nos ralos cabelos, coçam o branco da cara... Então sapeco óleo queimado nos esteios, no chão do alpendre, na escada.



Dias se foram; noites chegam e trazem tremor — em frangalhos me deixaram.



Na estrada de chão e no arvoredo, quietude; a cadela se aquieta; eu, exausto.



Futum — tudo catinga a tinta fresca!



Dou passos atrás e olho: redimo o mal-trato, e findo.



Uma dona vem aqui a mim e me pede q’eu transcreva no computador o que escrevera à mão. Ela irá deixar o escrito com o padre, na igreja da cidade. Vê só:



“E chegou a minha hora, assim como chegará a de todos vocês. Obrigada à minha família e a todos os meus amigos por virem trazer a minha matéria até a última morada. Pois o meu espírito já está junto ao Pai da vida eterna. Vou partir. Deixo o meu testamento. Viverei no amor, eis o meu mandamento.



Irei ao Pai. Sinto a vossa tristeza, porém, no Céu vos preparo outra mesa de Deus. Virá o Espírito-Santo que vou mandar para enxugar vosso pranto.



Voltem para casa de Jesus. Com a proteção de Nossa Senhora da Aparecida”.



Sábado, no Cafeína da Constante Ramos tomo café da manhã com uma amiga-colega e vamos à oficina. Na oficina literária a amiga lê por mim o meu O mundico da princesa Lili(ca). Acho que tropeça na leitura — fico quieto. Fala-se do texto... Gostam do uso que faço das palavras e o Mestre acha que agora cadencio melhor, tô mais entoado. Nem sei. Diz também agora perceber que os meus textos são mais pra leitura silenciosa do que pra alta (daí os tropeços da amiga, será?). Isso, talvez, pela forma como construo os períodos, será? Se é, se entendo direito, é isso. Nos meus pais passo e-mail a uma colega-amiga de quem guardo bastante a sua opinião, ela cabulou o encontro, não fora e envio meu texto. Quero lhe escutar.



Domingo, a colega-amiga me retorna dizendo que gostou do escrito, mas acha que a coisa pode terminar na “primeira parte”, no ínfimo parágrafo E falei...; e falamos... — que assim teria o paradoxo com o começo, com De fato, eu não iria te falar hoje, não, e sua repetição no finalzinho. Concordo, mais ou menos. Diz que a “segunda” é um conto em si, um mini conto; diz que não gostou da “terceira”, achou chata toda a citação do Kafka à Felice, e que o parágrafo, esse, ele ficou deslocado do resto... Acho chata, não. Nem mais ou menos concordo com seu deslocamento dentro do contexto, e penso pôr no romance, e assim, as “partes”, elas viram fragmentos.



Ainda hoje fui assistir Babel, um bom filme. Quem for vê-lo verá que nas tantas línguas faladas em todas há solidão, em tudo. Desamparo, é, melhor dizer.



Segunda, subindo do Rio a Paty, pra casa dirijo pensando no filme e decido que o nome do meu tal futuro romance — ou novela, o que for — não será mais O vento... domingo, quando cai a tarde — título longo demais —, mas, sim, retalhos cerzidos, assim diz objetivamente o que é, a que veio. Se publicado, quem vir a ler, lendo desta forma o entenderá. Sei lá por que fiz o paralelo filme-romance. Por que aquele é narrado em feedback costurados, interligados por um fato? Talvez.



Penso em ajuntar algumas coisas que escrevi, mais umas tantas pra frente, e encadeá-las numa só. Isso eu já tentei fazer, eu sei, e desisti por que me senti incapaz da empreitada. À época me senti um tão-só escrevinhadeiro; agora, um aprendiz de escritor de mim. Agora é pra valer, espero, pois... porque não aguento mais não fazer qualquer coisa com eles, aqueles textos. Acho que tem alguma qualidade, acho sim, e acho que, agora, consegui achar a minha voz — meio rouca e gaga, sei, eu sei!, mas a encontrei deixando de ser, ao menos, afônico. Agora é reescrever entrelaçando, e imprimir um tanto de disciplina, assim fazer com que a coisa vá aparecendo, a se compor.



Antes de tudo, pra que eu comece, que venha — peço muito, não, tipo felicidade —, que me venha ao menos uma nesga de alegria cá dentro, mesmo que seja um alento via Prozac. Como está, assim não dá. Tem-se que escrever com alegria, prazer. Com angústia, sim, certamente pela escrita em si, mas sempre com alegria animosa. Aliás, necessário é ser-se assim em estado, assim realizando qualquer coisa, e não estar num mero ânimo de baixo acabrunho, amuado...



Na primeira pessoa, é, é assim que farei. As pessoas pouco afeitas à leitura logo irão me identificar — eu, o autor — com o narrador, por ser na primeira pessoa, mesmo que inominado. Até aquela colega-amiga, pessoa letrada e tal, mas pessoalmente me conhece pouco, até ela, no seu e-mail me disse que o texto, esse último, é mais uma vez claramente autobiográfico. E quem, então, me conhecer mais do que ela? Dou de ombro, que cada um entenda e pense o que queira. Tá bem, sei do escracho, que escrevo o evidentemente Eu... do Bem e do Mal, sem dualidade nem mitigar... mas qual, texto de qual escritor não é autobiográfico, ou ao menos um tanto biográfico de si? O cara tira coisas da onde, do nada??? De alguma vivência — de qualquer maneira que se tenha vivido — o sujeito cata daí o que escreve! Que maneira? Sei lá, na prática praticada ou na literária lida, o que for, ou, principalmente nas duas coisas enleadas!



O famoso bardo inglês, leia-se só sobre como escrevia, surrupiando histórias de outros fez as suas, e, por sua vez, o albanês Ismail Kadaré no seu trágico Abril despedaçado “roubou” algo daquele. E outro, Borges é outro: quando cego, escreve e escreve ditando, mas a sua escritura desde então enxergou através daquela atual escuridão ou da claridade do tantão que antes vira, do que lera? Madame Bovary sou eu, Flaubert confessa aos moralistas de plantão, talvez insinuando ter saído um tantinho de si e assim indo a se encontrar um tanto em Emma Bovary... e assim a compôs.



São todos iguais!, apenas ficcionam variadas verdades contando mentiras.



Terça, vasculhando papéis lembro do dever de casa pro dia 24. Foi passada uma frase diferenciada pra cada um do grupo, e com ela tem-se que inspirar inserindo-a no seu — de cada um — texto. As frases foram tiradas do perturbador conto O convívio, de Noll. Logo da onde, de quem!



Caramba, como é que farei isso? Ah, darei uma ajeitada, uma enganada qualquer... Mas aquela turma não se dá ao engabelo! E fazendo a coisa ajeitadinha, não se dá? Tenta, tenta pra ver, só pra ver se sai desse encalacro, e ver no que dá. Ó, vê só, ouça, ouça blues feito aboio, sempre te ajuda a rebanhar intuição... É, acho que nem assim — é que tô borrado. Sabe, até gostei da minha frase... mas é que tô borrado. Ela teria tudo a ver: eu na merda, com três cadelas a lidar mais doze filhotes pra paparicar, sim, ela teria... Mas, como o ser-personagem narrado naquele conto, o da tal frase, que não é animal nem gente, é num sei quê — seria a máquina de ser? —, borrei.



Quarta-feira.



Quinta, manhã que segue, sigo sem quengo, e então do diário fiz crônica. Crônica? Quinta-feira cinzenta quando na vesperal faz-se um claro e a torna rosácea, mas já é noite, se finda.



Diante dessa tela rascunhada de garranchos digitalizados, vem ela, vem a maldita frase e diz pra todos sem dó ou pudor algum aqui do meu acanho, diz o que nessas horas sempre fez comigo: ... Aí eu botava o papel sujo no cesto, pegando-o sempre pela nuca, como se faz com cachorro que, desavisado, comete suas necessidades, sei lá, em cima do sofá.



Me surpreendo ainda, depois de tanto tempo, com as coisas que você me diz. Me surpreendo, sim. Coisas amargas! Aos poucos vou aprendendo seu estranho dialeto. Você fala sem palavras, não fala por signos. Significante é, pra você, abstrato; significado, puro referencial. Quando escuta, não ouve, apenas com fatos resmunga, ou, tem vez, eloquece, se assim posso dizer, e destrambelha a me falar com destrato.



Visto palavras, próprias, nos meus pensamentos... mas você nem digna atenção; ausculta minh’alma, mas, surda, cala; escrevo prosa — linhas esmeradas —, assim invento, mas ignora; todo prosa vasculho variantes que se dilatam...



Sou uma negação, assim me delato: escrevo melhor do que vivo, e, você é prova, nem bem escrevo. Mas aí, tão mais que de repente, você escuta, até me ouve. E no que vivo, no que mal te pergunto um tremor qualquer, me responde, é assim mesmo... reticente. Então, perdido, discorro inseguranças quando você cai na mudez.



Um tempo estamos assim: eu, no discurso teórico; você, na prática silenciosa. Quando, enfim, calo acabrunhado, eloquente você me expõe possibilidades. Argumento pedras no caminho. Você sorri e diz, é assim mesmo... Pergunto projeções e me responde, agora. Rodeio verdes esperanças, e você recita um quintanar quando diz, sua fé é um urubu pintado de verde, me chama de volta à provável sombra. Grito desespero e você desconversa! Afônico, com gestual indago tantos por quês; quando bate ombros com desdém.



Nas invencionices sem etimologia crivo grafia — mais ou menos sabendo os porquês dos por quês —, assim justifico minha humanidade; você faz que nem me lê, e ainda, macaca, esconde o rosto (olhos, ouvidos, boca). Neste ponto transgrido a hierarquia, e grito: Ouça, sou um homem! Sou uma sua parte viva que se quer livre! Exijo independência pra ser, pra criar & descriar a mim, mim próprio, eu irado ou eu terno. Por que sou um indivíduo, e assim, redundante, único, quero tão-só invencionar! Me digo mais alto, mais longe, mais fundo, edifico arquiteturas graves,transcendências rejuvenescedoras, desafio o tempo, e tudo, tudo. Toda a pseudoarte é nada pra mim, é dilacerada palavra sem voz! Tem vez, sei, muita vez peço penico e me socorro no bluesblues! —, ou fonografo sons do nosso canto interiorano desconhecido das massas.



Exausto de você — rica e pernóstica —, de bater-me um milhão, eu com apenas míseros trocados, revido, bato à porta e fecho questão com o desconhecido. Você então me diz, candidamente: Vai, quem ladra não morde... Diz ditado batido. Mas, engana-se, te digo, ‘teja certa: certo dia, vou vou... e vou! Vai que o cara, eu, se encha de vez... e, resoluto, vai! Aí, sem saídas — nu da carne à alma, do substantivo ao adjetivo, do advérbio ao predicado... do extrato ao substrato —, vai que vou. Apenas me resta, quem sabe?, pontuação. Talvez, nem isso. Nem!



É quando sei que ouve meu berro! Nesses momentos há confraternização e vamos por um tempo, sei lá, pequeno, nos sabendo livres de flancos, nos sendo francos. Então sem cerimônia nos tratamos, é verdade: eu, pelo seu nome; você, pelo meu. Sentados ao alpendre, às cores vespertinas bebo cachaça e te ofereço; você, vez e outra a aceita. Falamos horas animadamente — nunca dias! —, rememoramos tempos da minha falta de intenção, do meu tato sem jeito contigo, quando faço promessa de te deixar, promessa nunca cumprida. Você... eu não sei mais me desvencilhar de você, e, teimoso insisto em a ter na tela, quiçá em papéis de livreiros — de sebos, que seja!



Manhã seguinte — sempre assim! —, acordado e aprumado pelos seus rasos de luz, retribuo o sorriso. Então recomeçamos certos de que retornaremos muitas vezes aos embates no tráfego do dia a dia, à minha primeira teclada, ao meu segundo destrambelho verborrágico...



Mais seguros de que queremos o apaziguo e assim continuar até quando a eternidade durar, com a mesma disposição, sim, no aguardo um do outro enxergamos nos achegar.



Publicado por Germino da Terra em 31/07/2011 às 18h33
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.

Site do Escritor criado por Recanto das Letras